O sacrilégio do altar

A salvaguarda do interesse público permite financiar uma instituição que, só no Santuário de Fátima, recebe anualmente milhões de euros em esmolas e donativos, mas não torna públicas as suas contas?

Não é novidade a subserviência do Estado português aos caprichos da Igreja Católica Romana. O mais curioso, e mesmo bizarro, é o facto de partidos e políticos laicos criarem mecanismos legais especiais para permitir ajustes diretos e derrapagens financeiras em benefício de uma confissão religiosa, sabendo que, no fim, os custos serão sempre pagos pelo erário público, financiado pelos impostos de todos os contribuintes.

Perante a obra faraónica que Carlos Moedas e o seu executivo municipal decidiram ofertar para a receção ao Papa, somos mesmo obrigados a nos benzermos face aos valores pornográficos do negócio e à total ausência de transparência e escrutínio público.

O presidente da Câmara de Lisboa argumenta, de forma falaciosa, com o retorno que a economia portuguesa e em particular a projeção da marca Lisboa e a dinamização do comércio local beneficiarão com a realização da Jornada Mundial de Juventude. Convém relembrar que os fins nem sem sempre justificam os meios e nenhum retorno económico branqueia o despesismo e a falta de transparência e rigor na gestão dos bens públicos.

Neste processo, é igualmente sinistra a intervenção da Caixa Geral de Depósitos (um banco detido pelo Estado que seguiu a política de encerrar agências e aumentar as comissões de manutenção dos depósitos, numa estratégia questionável de verdadeiro serviço público) ao conceder um donativo de 100 mil euros à fundação criada para servir de chapéu-de-chuva à Jornada Mundial de Juventude.

A Igreja Católica Romana é uma das organizações mais poderosas e ancestrais, mas também uma mais das corruptas desde a sua origem. Nem é preciso recuarmos muito no tempo para esbarrarmos nos sucessivos escândalos financeiros do Banco do Vaticano ou seguirmos as rotas de fuga dos criminosos nazis da Segunda Guerra Mundial para percebermos a cumplicidade ativa de bispos e cardeais.

A este propósito, importar revistar a investigação da revista Visão e do historiador António Louçã que nos revelam que o Santuário de Fátima teve ouro nazi depositado numa conta bancária ilegal (Visão, n.º 368, 5 de abril de 2000; Negócios com os Nazis, António Louçã, Fim de Século Edições). Até final dos anos 70 do século passado, era prática do Santuário usar o ouro oferecido pelos fiéis (classificado como “ouro velho” ou “cascalho”) para ser derretido em barras e reintroduzido no circuito financeiro através do Banco Pinto Magalhães.

A fazer fé nas declarações do bispo auxiliar de Lisboa, “confesso que o valor do palco me magoou”, devemo-nos sentir mesmo magoados pelos sucessivos auxílios de Estado à Igreja Católica Romana e fazer três perguntas que exigem respostas aos contribuintes:

  1. A salvaguarda do interesse público permite financiar uma instituição que, só no Santuário de Fátima, recebe anualmente milhões de euros em esmolas e donativos, mas não torna públicas as suas contas?
  2. Estando a Igreja Católica mergulhada no maior escândalo de pedofilia da história contemporânea, quais as garantias que o Estado e as autarquias que financiam o evento podem dar aos milhares de jovens que participarão na Jornada?
  3. A Igreja Católica está assim tão carente ao ponto de ser imprescindível o financiamento público para organizar a Jornada Mundial de Juventude ou é mais “cascalho” para derreter em barras de ouro?
Sugerir correcção
Ler 5 comentários