A voz das nossas mães

O nosso mapa das estradas está desactualizado e os lobos-maus do nosso tempo já não correspondem aos vilões de hoje. Esquecemo-nos de o que passa aos nossos filhos é a nossa bússola interna.

Foto
"Nem sempre é muito divertido andarmos com a voz da nossa mãe" @DESIGNER.SANDRAF

Querida Mãe,

Estava a descer uma rua com a minha mochila ao ombro quando ouvi a sua voz "Ana, põe já a outra alça, só uma faz-te mal às costas", e sorri porque era como se ali estivesse ali comigo. Mas também constatei que nem sempre é muito divertido andarmos com a voz da nossa mãe, a ditar constantemente recomendações!

Seja como for o que prova é que, de facto, quando as coisas são repetidas à exaustão, colam! Agora, nada nos garante é que isso seja uma coisa boa, até porque mesmo o melhor dos conselhos pode desencadear o efeito oposto ao desejado — só por birra, uma filha pode fazer exactamente o contrário.

Ui, e aí comecei logo a pensar quais serão as frases que estou a implantar na cabeça das minhas filhas, e que lá vão ficar gravadas com a minha voz; e quais é que gostava mesmo que permanecessem.

Sem me querer armar em "coach motivacional", não era incrível que alguns desses registos das nossas mães fossem de confiança em nós? Se de cada vez que eu tropeçasse nalgum obstáculo, o meu cérebro me enviasse imediatamente a sua voz com a mensagem "Não te preocupes, Ana, sei que vais arranjar uma solução"? Para que saiba... pus a alça! E agradeço o conselho porque de facto fico aflita do ombro quando penduro a mochila só de um lado!

Mãe, mas diga-me, que conselhos ainda ouve da sua mãe? E de quais gosta e quais dispensava?
Beijinhos!


Querida Ana,

Adorei a tua carta. És genial. Espero que esta mensagem fique tão coladinha aos teus neurónios como a da alça da mochila! E te ajude sempre que te sintas num beco sem saída.
Mas sabes quanto comecei a pensar nas frases lapidares da minha mãe, que me apanho tantas vezes a repetir-te a ti e aos meus netos, não fiquei lá muito animada. Conclui que a maioria eram lições de moral ou avisos, do estilo "não faças juízos precipitados, não te queixas e dá graças pelo que tens, não te esqueças de pentear o cabelo atrás", e coisas do género da alça da mochila, que não são particularmente inspiradoras.

Provavelmente porque, enquanto mães, sentimos que o nosso papel é o de educar e aperfeiçoar as nossas crias e, simultaneamente, protegê-las de todos os males, numa versão mãe do Capuchinho Vermelho. Ou seja, de mãe chata, que anda constantemente a dizer “Tem cuidado com o lobo-mau”, “Vai pelo caminho e não pela floresta”, “Não fales com estranhos”, e coisas do género que, objectivamente, são uma perda de tempo porque o nosso mapa das estradas está desactualizado e os lobos-maus do nosso tempo já não correspondem aos vilões de hoje.

Esquecemo-nos de que o que conta, o que passa verdadeiramente aos nossos filhos, é a nossa bússola interna, os valores fundamentais pelos quais nos regemos enquanto pessoas, e que se comunicam por osmose, sem grandes sermões ou morais da história. E aí ficam capazes de, mesmo nos dias de nevoeiro cerrado, descobrir o Norte.

Que recebi da minha mãe os pontos cardeais não tenho dúvida nenhuma, da mesma forma que estou segura de que já os transmitiste aos teus filhos, e todos os dias os reforças só por seres como és. Por isso, põe lá as duas alças que eu, pela minha parte, vou-me esforçar por te recitar uns mantras mais positivos, do estilo, diverte-te, goza a vida, tem compaixão por ti mesma e escreve-me muitas cartas, porque me fazem tão feliz.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

Sugerir correcção
Comentar