Picasso vendido por judeus já fora da Alemanha nazi deve ser devolvido aos herdeiros? — Guggenheim não concorda

A obra, uma das pinturas mais conhecidas de Picasso da colecção do Museu Guggenheim, foi vendida por um casal de alemães judeus para financiar a viagem até ao exílio na Argentina.

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Pormenor de "A Engomadeira", uma das mais conhecidas obras de Picasso da colecção do Museu Guggenheim, de Nova Iorque dr

Pablo Picasso já vivia há quatro anos em Paris, mas era ainda um jovem pintor desconhecido quando pintou A Engomadeira, uma das mais conhecidas obras do mestre do cubismo da colecção do Museu Guggenheim, de Nova Iorque. O pintor recorreu a uma paleta dominada pelos azuis, cinzentos e brancos, aquela que deu corpo ao chamado "período azul", para retratar uma jovem mulher a passar a ferro. O quadro de 1904, que mostra o interesse de Picasso pelas condições de vida da classe trabalhadora mais desfavorecida, uma empatia sentida por alguém que também viveu numa relativa pobreza nesses primeiros anos de carreira, descreve o site do museu, está no centro de uma acção judicial que deu entrada este mês num tribunal de Nova Iorque.

Woman Ironing ou La repasseuse foi propriedade de um casal de alemães judeus, Karl e Rosi Adler, que ao fugir da Alemanha nazi terá vendido, em 1938, já fora do território alemão, a pintura de Picasso por um nono do seu valor. Mais de 80 anos depois, os herdeiros reclamam a propriedade da obra.

A pintura, que foi deixada em testamento ao Museu Guggenheim nos anos 70 por um marchand e coleccionador, também ele judeu, está avaliada entre 100 e 200 milhões de euros, segundo o processo judicial.

Os descendentes do casal alemão apresentaram um processo civil no Supremo Tribunal do estado de Nova Iorque contra o Museu de Arte Moderna Solomon R. Guggenheim, em Manhattan, que desde 1978 exibe a obra pintada pelo mestre espanhol, considerada uma das obras-primas do período azul, que vai de 1900 a 1904.

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Repordução de "A Engomadeira" (1904) dr

Os queixosos, que junta um grupo de herdeiros nos Estados Unidos e na Argentina, alegam na acção datada de 20 de Janeiro que houve uma venda "forçada" em Outubro de 1938 porque a família Adler foi pressionada a vender a pintura, escreve a agência Lusa.

Em comunicado, o Museu Guggenheim contesta o processo, que diz não ter fundamento. Foi uma "transacção justa" feita com uma galeria que a família conhecia bem, justifica o museu, citado pelos media norte-americanos. "À época, Adler não se teria desfeito da pintura, nem pelo preço com que o fez, não fosse a perseguição nazi a que ele e a sua família foram e continuariam a ser submetidos", diz a queixa citada pelo New York Times.

Angústia do exílio

Woman Ironing foi comprada por Karl Adler, em 1916, a Heinrich Thannhauser, um galerista judeu alemão de Munique. Adler, que era proprietário de uma fábrica de curtumes, vivia com a mulher em Baden-Baden, próximo de Estrasburgo.

Com a chegada de Hitler ao poder nos anos 30, os nazis deram início à perseguição dos judeus, através de uma série de leis, nomeadamente as Leis de Nuremberga, que passavam pela confiscação de bens e do património. A família Adler decidiu abandonar o país em Junho de 1938, passando por uma série de países - Países Baixos, França e Suíça - antes de obterem um visto para a Argentina, onde acabaram por se estabelecer já na década de 40.

Para conseguir o visto e a passagem, os Adler tiveram que vender o quadro em Outubro de 1938 a Justin Thannhauser, filho do galerista de Munique, acabado ele próprio de se refugiar em Paris. A venda foi concluída por 1552 dólares, o que representaria hoje cerca de 32.000 dólares, nove vezes menos do que os 14.000 dólares que os Adler poderiam ambicionar ganhar com o quadro de Picasso no início da década de 1930.

Em 1940, a família Alder saiu da Europa de barco em direcção a Buenos Aires, conta a revista Art Forum, altura em que Justin Thannhauser já tinha emprestado o quadro ao Stedelijk Museum, em Amesterdão, mostrando o interesse que a obra já despertaria.

O argumento central da queixa é que a obra, avaliada hoje no mercado da arte entre 100 e 200 milhões de dólares, foi vendida sob coação.

"Thannhauser estava bem ciente da angústia da família Adler", argumentam os herdeiros, nomeadamente o bisneto Thomas Bennigson, e várias organizações judaicas norte-americanas. A acção judicial apoia-se numa lei de 2016, a Holocaust Expropriated Art Recovery Act, que enquadra a restituição de obras de arte às vítimas do Holocausto.

Em 1976, quando Justin Thannhauser morreu, a sua colecção foi deixada em testamento ao Guggenheim. Antes deste legado, A Engomadeira esteve emprestada mais de uma década ao Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque. Tem estado exposta quase ininterruptamente desde 1978 como um dos destaques da colecção de Picassos Guggenheim, que inclui ​mais de 30 obras do pintor cubista.

A instituição diz que, nessa altura, contactou um filho de Karl Adler e outros familiares que não manifestaram qualquer reserva sobre a sua venda a Justin Thannhauser.

Num depoimento citado pelo jornal norte-americano, o Guggenheim afirma que “leva muito a sério as questões de proveniência das obras, bem como os pedidos de restituição" e que já "realizou uma extensa investigação e um inquérito detalhado" sobre a obra de Picasso.

O museu, que foi pela primeira vez contactado pelos herdeiros em 2017, afirma-se como o "proprietário legal" da pintura. “Os factos demonstram que a venda da pintura por Karl Adler a Justin Thannhauser foi uma transacção justa entre as partes com um relacionamento duradouro e contínuo”, diz o museu. “O Guggenheim acredita que o resultado da presente acção judicial confirmará que é o legítimo proprietário de Woman Ironing.”

Nicholas M. O'Donnell, um advogado especializado em questões de arte ouvido pelo New York Times, disse que para o desfecho da acção judicial pode ser importante que Adler tenha apenas vendido a pintura depois de fugir da Alemanha de Hitler. Se a lei e a história reconhecem que os judeus foram perseguidos e não tinham o poder de fazer um acordo justo dentro do território controlado pelos nazis, é menos claro como é que pode reconhecer essa coacção fora do território alemão.

Não é a primeira vez que o nome de Justin Thannhauser aparece envolvido em negócios que resultaram em acções no tribunal ao abrigo da legislação contra a arte expropriada por nazis. Em 2020, outra obra de Picasso foi reclamada à National Gallery of Art de Washington pelos herdeiros do banqueiro Paul von Mendelssohn-Bartholdy. A disputa terminou com a devolução do desenho de Picasso, um pastel de 1903 também do período azul.

No âmbito das celebrações dedicadas aos 50 anos da morte de Picasso este ano, o Museu Guggenheim está a organizar uma exposição dedicada à carreira artística do mais celebrado artista do século XX, mais precisamente aos seus primeiros anos em Paris, numa mostra intitulada Young Picasso in Paris, com inauguração prevista para Maio.

É provável que esta pintura da fase final do período azul tenha algo a acrescentar à história contada pela exposição. Como lembra o site do Guggenheim dedicada à pintura, esta​ mulher que na sua magreza angulosa pressiona com toda a sua força um ferro de engomar é "uma metáfora dos infortúnios dos trabalhadores pobres". "Talvez nenhum artista tenha retratado a situação das classes baixas com mais pungência do que Picasso", acrescenta a página dedicada à pintura e assinada por Nancy Spector, antiga directora do museu. Com Lusa

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