Um mergulho no submundo da Margem Sul, um território “em conflito com a sua história”

Por dentro e por fora, a Margem Sul de Diogo Simões entrega-se despida à sua mirada. O fotolivro A Zona resulta de dez anos de imersão num território “em conflito com a sua história”.

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Imagem do livro "A Zona" Diogo Simões
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Imagem do livro "A Zona" Diogo Simões

Em Maio de 2007, a propósito da construção do “novo” aeroporto de Lisboa, o ex-ministro Mário Lino chamou, reiteradamente, à Margem Sul “deserto”. Descreveu-o como um lugar “onde não há gente, onde não há escolas, onde não há hospitais, onde não há cidades, onde não há indústria, onde não há comércio, onde não há hotéis”. Em 2011, quatro anos depois dessa afirmação controversa – e precisamente no ano da reentrada da troika em Portugal – o fotógrafo Diogo Simões daria início a uma incursão pelo território que duraria dez anos.

O fotolivro A Zona, editado em 2022 pela Pierre Von Kleist, reúne um conjunto pungente de imagens que Diogo produziu ao longo dessa década; essas traçam um retrato cru, tenso e pessoal da Margem Sul, que o fotógrafo descreve, em entrevista ao P3, como “um território em conflito com a sua própria história”, que atravessa “uma transformação profunda, em certa medida, imposta”.

Sinónimo de resistência

Diogo Simões nasceu em Miratejo, no concelho do Seixal, em 1988, e cresceu num dos muitos complexos habitacionais de “oito ou nove prédios idênticos” que se ergueram durante essa década a sul do Tejo. Ainda reside na Margem Sul, mas em Almada, motivo pelo qual “fotografar a região foi um processo natural”. “Era o sítio a partir do qual me interessava trabalhar”, afirma o fotógrafo. Mas o que caracteriza a Margem Sul?

Entre 1971 e 2021, a população da Península de Setúbal mais do que duplicou – em 1970, os Censos registavam 402.940 habitantes; em 2021, o número exacto de residentes era de 808.689. O crescimento populacional surge na sequência da construção da Ponte 25 de Abril e do estabelecimento da indústria pesada nacional na zona ribeirinha, nos anos 60 e 70. O preço barato das casas, dos terrenos, e a boa comunicação ferroviária e rodoviária com Lisboa deram origem ao surgimento de zonas dormitório que se desenvolveram rápida, espontânea e desordenadamente.

Imagem do livro "A Zona" Diogo Simões
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Imagem do livro "A Zona" Diogo Simões

O caos urbanístico, que o tempo e o investimento público não foram capazes de reverter, tornou-se uma das características mais distintivas da Margem Sul – que não pode ser dissociada da pobreza e fractura social que se tornam evidentes numa das primeiras imagens do livro, em que o Bairro da Jamaica assume protagonismo.

Talvez por uma questão de proximidade, Diogo é vago e reticente na caracterização da extensão de terra sobre a qual se debruçou ao longo de uma década. No plano concreto, “existem regiões de natureza selvagem e grandes áreas industriais ao abandono”, atira. “Há quem viva em bairros de autoconstrução e quem more em condomínios fechados; não há um habitante-padrão.”

No plano identitário, Diogo caracteriza a Margem Sul como uma zona de “resistência”. Essa está patente “nos álbuns do [rapper e activista] Chullage, na organização de alguns bairros, nos putos a andar de skate na São João Baptista, nos ‘ocupas’ de Setúbal, no pessoal que faz raves, nos moradores que têm combatido os despejos no Segundo Torrão, na malta que vai pescar para os pontões ou apanhar bivalves no Tejo”. A editora Pierre Von Kleist, por sua vez, define a Margem Sul como “uma terra bonita com montanhas, praias de areia clara, golfinhos e guetos”; as imagens de Diogo Simões espelham, com algum rigor, essa descrição.

O mergulho no submundo

As primeiras imagens de A Zona sugerem uma viagem soalheira pelo território, mas cedo desembocam num ponto de interrogação: um sol mortiço, que nasce ou se põe, deixa o leitor num limbo. Num fôlego, a noite cai e assim se dá o mergulho no lado sombrio da Margem Sul. Uma paradoxal frieza intimista trespassa os rostos e lugares de A Zona. Os descampados, as ruas, os complexos habitacionais e as suas entranhas são, invariavelmente, despojados de ornamento e gritam sinais de alerta a quem deseja aproximar-se. Indícios de morte, de perigo, abundam nas paisagens inóspitas. Por dentro e por fora, a Margem Sul de Diogo não gosta de ser observada, embora se entregue crua, despida à sua mirada.

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Fotolivro "A Zona" foi editado em 2022 pela Pierre Von Kleist ©Diogo Simões

Vivem, presos nas imagens, matilhas de cães, répteis que rastejam sobre a pele, carcaças em decomposição, mesas repletas de facas e lâminas de passado e futuro desconhecidos, paredes grafitadas com mensagens cifradas, rostos rasurados. “Who cares!”, lê-se num dos muros. Cristo numa moldura partida denuncia um território excomungado, esquecido, negligenciado. Dialogam a opressão e a dissidência, a ruína e a resistência. “Há quem coleccione facas, outros que se suicidam em carros, há animais que morrem e outros que são mortos”, enumera Diogo. “São tudo elementos que fazem parte da vida e com os quais me relaciono. São momentos que vivi, vêm do real e estão presentes no livro.”

Primeiro foi Lisboa, agora vende-se o resto

O livro é pautado por um enorme grau de subjectividade. Porém, por detrás de uma das imagens, Nuno é protagonista de uma história real, particular. Amigo de Diogo, Nuno faleceu recentemente e figura numa fotografia do livro com “uns papéis na mão”. “Na altura, estávamos os dois à procura do contrato [de arrendamento] da sua casa, tentando evitar que fosse despejado”, conta.

O problema da habitação, ou mais concretamente do acesso à habitação de quem vive abaixo do limiar da pobreza, como era o caso de Nuno, é uma das inquietações de Diogo Simões. “Actualmente, discute-se a possibilidade de alterar o nome da Margem Sul para Lisbon South Bay”, comenta. “São tentativas de reescrever a história, de querer dar uma nova roupagem, de higienizar os lugares para os tornar ainda mais apetecíveis ao investimento internacional.” É um problema transversal no país, anui. “Primeiro foi Lisboa, agora vende-se o resto.”

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Livro reflecte o olhar de Diogo Simões sobre a “relação com as pessoas e os lugares durante uma fase” da sua vida ©Diogo Simões

A Zona, cuja publicação resulta da premiação na primeira edição do Prémio do Livro de Fotografia promovido pela Associação Arte Deste Século, reflecte o olhar de Diogo Simões sobre a “relação com as pessoas e os lugares durante uma fase” da sua vida. “As imagens não nasceram de grandes ideias, a própria edição do livro também não. É um trabalho de sensibilidades.”

Não cabe, assim, a Diogo fornecer respostas definitivas sobre o que o leitor deve retirar das imagens, que deverão falar por si. “O espectador entra no livro da forma que quiser, não é algo que eu controle.” A edição, realizada em conjunto com André Príncipe, “foi trabalhada com atenção ao detalhe [para garantir que] nenhuma das imagens é gratuita ou nefasta” para o retrato da região. “Não acredito que nenhuma delas reforce estereótipos”, defende Diogo. Uma leitura nesse sentido, remata, será feita “por quem já tenha a intenção de os reforçar”.

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