As mulheres são um grupo minoritário?

Quando dizemos que um grupo é minoritário, estamos a considerar que a voz dessa comunidade tem menos influência do que as vozes dominantes. Não é uma questão numérica, mas antes de dinâmicas de poder.

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A peça de teatro Anónimo Não é Nome de Mulher retrata a opressão feminina ao longo de séculos Teresa Miranda

Podemos considerar as mulheres um grupo minoritário? Consoante o contexto, sim, podemos. Mas esta ideia não é tão óbvia ou consensual. Durante o Mundial de Futebol, escrevi neste espaço sobre o facto de o Qatar fazer o elogio da tolerância e do respeito durante a cerimónia de abertura e, ao mesmo tempo, manter um regime autocrático que oprime cidadãos em função do género ou da orientação sexual. Na caixa dos comentários, quatro leitores contestaram esta linha de pensamento sublinhando que, numericamente, as mulheres não estão em minoria no planeta.

“As mulheres são 50% da população e em muitos países representação [sic] percentagens superiores. Lá pelos direitos das mulheres serem constantemente violados isso não faz das mulheres uma minoria”, argumentava um leitor, a quem agradeço ter levantado esta questão pertinente. De facto, ensinaram-nos desde pequenos que a maioria é uma questão matemática a começar pelos valores democráticos que tanto prezamos: se um candidato reúne a maioria dos votos, é eleito.

A noção de grupo minoritário que invoquei para discorrer sobre o Qatar, contudo, emerge do domínio da sociologia. A ideia de que a mulher também poderia constituir um grupo minoritário começou a ser discutida na academia nos anos 1950. Hoje, quando dizemos que um grupo é minoritário, estamos a considerar que a voz dessa comunidade tem menos poder, presença ou influência do que as vozes dominantes. Não é uma questão numérica, mas antes de dinâmicas de poder, representatividade, direitos e privilégios.

Quem bem explica a questão dos grupos minoritários, e dos espaços marginais a que podem estar votados, é a diplomata Ana Nunes. “O que é ‘normal’? Seria ‘normal um conceito estatístico, que reflecte uma maioria numérica, ou simplesmente um molde que se construiu como o ‘desejável’? Se somarmos todas as minorias classificadas como desviantes – negros, gays, transgénero, pessoas com deficiência e até mesmo mulheres , veremos que, na verdade, o ‘excepcional’ constitui a maioria. Maioria não é um conceito matemático, mas um conceito que traduz as relações de poder dentro de uma sociedade”, escreve a autora no livro Cartas de Beirute (2015), infelizmente apenas publicado no Brasil.

Com as conquistas femininas na Europa e noutras regiões do globo, muitos de nós poderão julgar estas discussões ultrapassadas, preferindo empurrar casos como o do Qatar e do Irão para a gaveta lamentável das excepções. É um erro. Sobejam exemplos de que a igualdade é um caminho que começou a ser desbravado, sem dúvida, mas está longe de estar solidamente pavimentado. Todo trilho pode ser dominado pela vegetação rasteira se não for repisado de forma consistente.

Um relatório das Nações Unidas, divulgado no ano passado, estimava que seriam necessárias “décadas, até séculos”, para que as mulheres ficassem em pé de igualdade com os homens. Dados da Pordata, também publicados em 2022, indicavam que as mulheres portuguesas ganham, em média, menos 220 euros por mês do que os homens, estando mais vulneráveis à pobreza e desemprego. Isto apesar de investirem mais tempo em trabalhos não remunerados, como a realização de tarefas domésticas e a prestação de cuidados a crianças e idosos.

Houve avanços louváveis mas, persistindo exemplos gritantes de desigualdade, não é de todo descabido falar nas mulheres como um grupo minoritário no Qatar ou no Irão. Este olhar sociológico, esta insistência em cartografar estruturas de poder e dominação, ajuda-nos ainda a detectar resquícios dessa opressão nos espaços onde vivemos hoje.

A peça de teatro Anónimo não é nome de mulher, que esteve em cartaz este mês na Casa das Artes de Famalicão, recorda-nos que durante a vigência de regimes opressores, como a Itália fascista (1922-1943) ou a ditadura militar brasileira (1964-1985), por exemplo, foi possível encarcerar mulheres em hospícios invocando loucura, rebeldia, infertilidade ou comportamentos inadequados.

Mariana Correia Pinto – autora da peça e jornalista do PÚBLICO – confessou ter tido “a sensação de que esta realidade não era exclusiva dos séculos XIX e XX: ainda se vive actualmente”. “Obviamente não são os hospícios, mas ainda existe uma luta maior para mulheres do que para homens”, afirmou. Este combate desigual, mais longo e desgastante, não pode ser calculado à luz de uma operação matemática.

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