O Coração Ainda Bate. Os filhos

Inês Meneses escreve sobre maternidade.

Nunca pensei em ter filhos. Da mesma forma que nunca pensei em casar-me de branco. E, na verdade, dois casamentos depois, a cor mantém-se imaculada: nunca a usei. Não planeio.

Também não planeei ter filhos. Nunca senti qualquer segundo do relógio biológico. Sempre me vi a trabalhar, coisa que me aconteceu aos 16 anos, e nunca mais parei. A minha vida tem sido uma sorte imensa de fazer o que sempre amei: a rádio, a música, a escrita. Apaixonei-me pela disciplina de me ver ocupada e seguir em frente, até quando o que queria era não ter de acordar de madrugada para ir trabalhar. Consegui ser diletante, ainda assim, no meio da disciplina, pela sorte de fazer o que gosto. O prazer mistura-se com a obrigação e podemos pousar sobre o que aparentemente tinha peso. A escolha, às vezes, também é nossa.

Quando inesperadamente fiquei grávida, tinha 35 anos. Ficámos incrédulos com a hipótese e de pernas a tremer com a confirmação. Lembro-me de nesse dia ter aberto a porta a uma grande amiga que vinha de visita e de ela ter perguntado: “O que se passa? Estás pálida.” Estava. As pernas tinham-me fugido para longe e eu era só um coração a bater apressado. Contei-lhe. Ela celebrou, mas nós continuámos lívidos. Demorámos uns dias a encaixar essa realidade que nos parecia estranha. A nossa vida era boa, feita de concertos, jantares, dançar pela noite fora. Termo-nos um ao outro.

Ia mudar tudo. Nós sabíamos.

Um dia fomos ao médico, um veterano muito cansado de ver partes de nós em apuros muito antes dos partos temidos. Disse-lhe que não tínhamos planeado aquele filho e que não sabíamos como seria. E ele disse: "A decisão é vossa, mas nos seus 25 anos ainda terá muitas hipóteses." Eu emendei-o: "Tenho 35." Ele mudou a expressão: “35? Então não se fala mais nisso. Vai ter esse filho.” Acho que nos rimos todos, entre o nervosismo e o equívoco. Estar grávida é que já não era engano. Tudo se encaminhava para que acontecesse. Os nove meses (foram dez, na verdade) foram permanentemente felizes. Lembro-me de ir com frequência a uma farmácia perto do trabalho e de a senhora já de idade que me atendia dizer sempre a mesma coisa: "É a grávida mais bonita que conheci." E assim segui, misturando vestidos, boinas, batons, tudo o que sempre fui, mas com barriga grande, muito grande. Às vezes brincavam comigo e diziam: “Tens a certeza de que não são gémeos?” Saltarei a parte do parto, que não cabe nesta história.

A nossa filha nasceu, fez há dias 15 anos. Durante este tempo, muita coisa aconteceu na vida de todos os que a ela estão ligados, nomeadamente a separação dos pais. Fomos e somos amigos. Ela nunca conheceu o atrito a que algumas crianças, infelizmente, assistem. Muitas vezes, anos depois da nossa separação, ainda passeámos os três de mãos dadas pela rua. E continuo 15 anos depois a dar a mão à minha filha, até ela me dizer para não o fazer. Hoje tenho 51 anos. Só agora percebi que é a idade da minha filha lida ao contrário. O que ela me trouxe e o que com ela tenho aprendido agarra-me à terra. Não tenho dúvidas de que me tornei melhor pessoa pela convivência que tenho com ela, por me espantar todos os dias com a sua sensatez, por a querer defender de forma quase violenta quando

a sinto incompreendida pelos outros. Lembrei-me agora de um momento tão distante, quando um dia estava na praia, grávida, acompanhada de outra amiga, a praia quase vazia, e de repente aperceber-me de um homem nas dunas a espiar-nos. Levantei-me. Peguei num pau que estava ali perto e corri em direcção ao homem, que desapareceu entre as dunas, assustado. Eu nunca tinha feito aquilo, mas também nunca tinha estado grávida. O meu instinto de sobrevivência já era uma luta pelas duas.

E assim sigo até hoje. Continuo a trabalhar com o mesmo prazer de há 15 anos. Talvez mais ainda? E tenho uma filha. Tenho uma filha e um arrependimento enorme (talvez o maior de todos) de não ter sido mãe de mais. Os filhos fazem-nos melhores todos os dias, agarram-nos à vida, até quando ela é, por momentos, baça. Os filhos são uma forma de fé inconsciente. Porque continuamos também a viver por eles. Para eles. E por nós de forma convicta. Não vou ter mais filhos. É uma certeza, mas a minha vida seria muito mais vazia sem ela, sem o milagre que foi poder conhecê-la. Eu, a tal que nunca quis ser mãe.


Siga o podcast O Coração Ainda Bate no Spotify, Apple Podcasts, Google Podcasts ou outras aplicações para podcast.

Conheça os podcasts da Rede PÚBLICO em publico.pt/podcasts. Tem uma ideia ou sugestão? Envie um e-mail para podcasts@publico.pt.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários