Interpretar datas de nascimento para prestar apoio a crianças com desnutrição

O meu trabalho é ajudar pacientes a compreender os cuidados disponíveis, deixá-los à vontade para fazerem perguntas e sentirem-se vistos e ouvidos. Esta é a pior seca que já vi na vida no Quénia.

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Njiiri Karago/MSF

Chamo-me Jeremiah Loki Tete e trabalho como intérprete com a Médicos Sem Fronteiras (MSF) no centro de alimentação terapêutica em regime de internamento de Illeret, no Quénia. Pertenço à comunidade daasanach e tenho uma família com duas mulheres e seis filhos. Antes de a MSF me contratar para trabalhar como intérprete, fui durante muito tempo voluntário comunitário de saúde no centro de saúde de Illeret.

Esta é a pior seca que já vi na vida. Em anos anteriores, morriam poucos animais, mas o que está a acontecer agora é simplesmente angustiante. Os animais são muito importantes para a comunidade daasanach. Antes disto, eu tinha mais de 900 cabras, 50 bovinos, dez burros e dois camelos. Com a seca, morreu todo o gado bovino, todos os camelos e só me restam 20 cabras e dois burros. Os animais são a fonte de rendimentos e de comida da minha família, pois comprávamos alimentos com o que ganhávamos com a sua venda. Agora vejo-os morrer sem poder fazer nada. Por vezes, a minha família tem de caminhar 100 quilómetros com os animais só para encontrar pastagens e, em resultado disto tudo, dependemos agora totalmente do meu salário. Também não podemos cultivar nada aqui por causa do clima; compramos comida no outro lado da fronteira, na Etiópia e em Ari.

Os rios secaram todos. Se queremos água, temos de andar seis quilómetros para a encontrar num dos poços rasos ao longo dos leitos dos rios – uma caminhada que demora, no mínimo, três horas. É uma hora até lá, uma hora à espera da nossa vez para a recolher, e mais outra para voltar. Devido à distância imensa só dá para ir lá duas vezes num mesmo dia.

As crianças das famílias muito pobres são as mais desnutridas. No passado, ajudávamo-nos uns aos outros oferecendo cabras ou gado bovino para estas famílias venderem e, com isso, comprarem comida, mas isso já não é possível porque perdemos quase todos os animais. Há uns tempos, uma das minhas filhas teve diarreia, vomitava e estava febril, sobretudo devido à qualidade da água que bebemos. Felizmente, conseguimos evitar que fosse internada, pois procurámos cuidados antes que piorasse.

Quando a MSF iniciou a resposta à desnutrição, voluntariei-me para ajudar a chegar às comunidades. E mais tarde, quando a MSF procurava um intérprete, os coordenadores recomendaram-me porque sabiam que eu conhecia bem a comunidade. Vivo a uns 30 minutos a andar das instalações e começo o meu trabalho nas rondas das 8h. Se houver novos internamentos, esclareço os tratamentos a quem acompanha os pacientes, mostro-lhes o hospital e explico como podem usar alguns artigos essenciais não-alimentares, como as roupas que são dadas às pessoas internadas.

Por causa das barreiras linguísticas e das baixas taxas de alfabetização, ajudo a comunicar e a interpretar datas e a descrever as complicações de saúde entre pacientes e profissionais médicos. A maior parte das pessoas na comunidade não tem datas como referência, o tempo é medido de forma diferente, com eventos representativos – uma temporada de chuvas, por exemplo – para assinalar datas como o nascimento das crianças. Ao fim e ao cabo, o meu trabalho é ajudar pacientes a compreender os cuidados disponíveis, deixá-los à vontade para fazerem perguntas e sentirem-se vistos e ouvidos. Tudo isto se traduz numa maior confiança nos cuidados prestados pela MSF.

A comunidade está agora mais aberta com os problemas que enfrenta, e as pessoas até já se encaminham umas às outras para o hospital. Aprendi imensos termos médicos sobre a desnutrição, ao traduzir diagnósticos e outros procedimentos médicos como medir o peso. A maioria das pessoas na comunidade não iria normalmente ao hospital, preferindo métodos de cura tradicionais. Mas ver uma cara familiar nas instalações hospitalares faz com que se sintam mais calmas, e facilita a aceitação deste tipo de cuidados, que não são habituais para elas.

A minha comunidade acredita em métodos tradicionais de cura, o que leva a demoras na procura de cuidados médicos. Uma vez, uma família trouxe uma criança muito doente ao hospital e, quando viram uma seringa, pediram que não fosse dada a injecção à criança, ameaçando abandonar o hospital. Falei com eles e expliquei-lhes a importância daquele tratamento, e confiaram em mim, não por causa dos termos médicos que utilizei, mas porque sabiam quem eu era e a comunidade de onde venho. A criança melhorou, e a família informou as equipas do hospital sobre outras pessoas na comunidade que necessitavam de assistência médica.

São precisas mais mensagens de saúde consistentes, sobre a importância de obter de forma atempada os cuidados médicos. Peço à minha comunidade para levar as crianças a serem vacinadas. Os hospitais não devem ser temidos, ajudam a salvar vidas. E levar uma criança ou adulto doente ao hospital é o primeiro passo para salvar uma vida.


Jeremiah Loki Tete trabalha com a Médicos Sem Fronteiras (MSF) como intérprete na resposta da organização médico-humanitária à desnutrição em Illeret, condado de Marsabit, no Quénia. A maior parte dos membros da comunidade de Illeret apenas fala a língua local e, com muitos prestadores de cuidados médicos a não serem locais, as barreiras na linguagem criam desafios para providenciar serviços de saúde. Os intérpretes desempenham um importante papel para gerar confiança na comunidade.

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