Os auéééu não sabem o que vão fazer – e esse é o seu espectáculo

Inspirados por um filme e pelo mito de Sísifo, os auéééu convidaram o escultor Fernando Roussado para repensar a sua presença em palco. O resultado é S/ Título #8, no TBA, Lisboa.

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Companhia auéééu joana linda

Tudo começou pela renúncia. Mas uma renúncia alheia. Ao verem o filme O Sol do Marmeleiro, em que o cineasta Victor Erice acompanha o pintor Antonio López ao longo da criação de um quadro, os membros da companhia auéééu sintonizaram-se sobretudo no momento em que López desiste de pintar o marmeleiro do seu quintal – sobretudo captar a sua luz, à medida que o tempo transforma também o seu objecto.

E foi a partir desse momento que os auéééu começaram a alimentar uma discussão que já vinham tendo acerca dos seus próprios processos criativos. O filme de Erice ampliava a vontade que tinham de pôr em causa os seus habituais pontos de partida de obras para o palco, ao mesmo tempo que reforçava a sensação de cansaço quando iam ao teatro como espectadores e sentiam que alguém lhes queria “dizer o que pensar”. E, portanto, para desmoronarem as suas próprias certezas convidaram um amigo, o escultor Fernando Roussado, para com eles trabalhar sobre aquilo que o Teatro do Bairro Alto, Lisboa, agora apresenta enquanto S/ Título #8, de 27 a 29 de Janeiro.

O objecto volúvel a que chegaram Fernando Roussado, Filipe Velez, Frederico Barata, Joana Manaças, João Luís Silva e Miguel Cunha aproxima-se, em certa medida, dos preceitos da música improvisada. Com um conjunto mínimo de regras estabelecido – o espectáculo decorre em cinco blocos de 20 minutos, com recurso a alguns materiais trabalhados em residência e que incluem uma esfera de meia tonelada, instrumentos musicais, utensílios de cozinha, etc. –, os seis performers e o desenhador de luz Daniel Worm improvisam cada segmento. É um espectáculo (talvez) sem palavras, sem fixação de uma estrutura, sem cenas ensaiadas, sem qualquer lógica de repetição. “A única coisa que ensaiámos”, dizem os auéééu, “foi a forma de estar em cena”. Todos os restantes ensaios, que os levaram a afinar esta orgânica, estão repletos de acções que – mandam as regras – tratarão de varrer das suas opções nos momentos de apresentação.

Não é por acaso que há uma esfera esculpida por Roussado em cena. Escutamos dos auéééu a referência ao mito de Sísifo como nuclear para S/ Título #8, uma vez que cada proposta de construção de cena acaba por ruir ao fim de 20 minutos – quando soa uma campainha e os seis tratam de limpar o espaço para recomeçar de novo. “De cada vez que vamos para o espaço”, explicam, “tentamos não repetir o bloco anterior ou alguma coisa que já tenha resultado noutro dia. Também porque, de todas as vezes que tentámos voltar a alguma coisa, ela não resultava da mesma forma. Na primeira vez há a surpresa, há o espanto daquilo que está a acontecer de maneira orgânica e não combinada. E ao repetirmos acabava por não ter o mesmo impacto e a mesma vibração em nós.”

E também porque, assim, inscrevem o risco, a possibilidade de falha e a ausência de sentido ou de controlo do espectáculo naquilo que estão a fazer. Sabendo que estarão sempre a tentar reagir ao que cada um dos outros possa propor nesse instante – correr em torno de um círculo de luz, cozer batatas, berrar a plenos pulmões, esculpir um bloco de pedra, tocar um instrumento de percussão... “Fomos parar a esta zona”, dizem, “em que estamos constantemente a lembrarmo-nos que temos de trabalhar a atenção, temos de trabalhar esta consciência de espaço.”

De uma forma totalmente desapegada, sem sacralização da obra. Com a noção de que um espectáculo que não se controla é tudo aquilo que “as políticas culturais vigentes” não contemplam. Os auéééu não querem, pois, ficar “na mão de programadores, directores e júris”, contrariando expectativas de “eficácia e eficiência dos objectos artísticos”. E querem acreditar que desistir pode também ser uma forma de continuar.

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