Crise dos yanomamis é o primeiro teste à política ambiental de Lula

Depois de prometer combater as invasões de terras indígenas e proteger a Amazónia, o Governo brasileiro terá agora de mostrar, numa situação muito complexa, que quer ir além das palavras.

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Lula visitou a terra indígena yanomami no estado de Roraima EPA/RICARDO STUCKERT/PR HANDOUT

A crise humanitária na terra indígena yanomami, onde centenas de crianças morreram por desnutrição nos últimos anos fruto da ocupação da área por milhares de garimpeiros, aparece como o primeiro grande desafio na agenda ambiental e de direitos humanos do Governo de Lula da Silva. Pede-se uma resposta contundente por parte das instituições governamentais para enviar uma mensagem de que as violações dos direitos dos povos indígenas não vão continuar impunes. Mas no terreno a realidade é muito complexa.

Os primeiros sinais dados por Lula e pelos seus ministros indicam a mudança profunda na abordagem às ameaças enfrentadas pelos povos indígenas em relação ao seu antecessor, Jair Bolsonaro. No início da semana, o Presidente visitou uma área da terra indígena, no estado de Roraima, no Norte do Brasil, onde denunciou a “grave crise” vivida pelos habitantes locais.

O ministro da Justiça, Flávio Dino, foi mais longe e disse haver “indícios fortíssimos de genocídio” na forma como as autoridades federais e estaduais permitiram que durante anos cerca de 20 mil garimpeiros se instalassem numa terra constitucionalmente protegida para explorar os seus minérios. As actividades levadas a cabo por garimpeiros tiveram um impacto directo no quotidiano dos quase 40 mil yanomamis que habitam uma área de quase cem mil km2 (maior que Portugal continental), deixando-os à mercê de doenças infecciosas, subnutrição, ausência de cuidados médicos e confrontos constantes com os invasores.

“O Governo Bolsonaro negou direitos fundamentais e é responsável pelo estado de calamidade e pela crise total que se instaurou na terra indígena yanomami”, diz ao PÚBLICO a especialista em políticas públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo. Não é segredo que Bolsonaro promovia abertamente a exploração das terras indígenas, que considerava demasiado extensas e improdutivas, mesmo contra a Constituição que consagra a demarcação de terras para os povos originários brasileiros. Durante o mandato de Bolsonaro nenhuma nova terra indígena foi demarcada, algo inédito desde a redemocratização.

Lula prometeu reverter por inteiro esse estado de coisas, prometendo fazer da protecção ambiental e dos povos indígenas desígnios prioritários. O seu Governo contempla, pela primeira vez, um Ministério dos Povos Indígenas, liderado por Sônia Guajajara, uma conhecida activista indígena, e o próprio Lula anunciou que pretende que a cimeira do clima das Nações Unidas de 2025 seja organizada na Amazónia.

Agora, menos de um mês depois de ter tomado posse, o Governo enfrenta o primeiro desafio ambiental. A primeira abordagem passou pela resposta de emergência, com a declaração do estado de calamidade pública e o envio das equipas médicas para a terra yanomami. Mas o desafio mais complexo será a retirada dos 20 mil garimpeiros que têm ocupado a terra indígena. Perante a ausência de fiscalização e a conivência de alguns sectores – pelo menos um batalhão de militares passava informações de operações a grupos de garimpeiros, segundo relatórios citados pela Folha de S. Paulo –, foram erguidas autênticas cidades, instaladas pistas de aterragem e até abertas estradas numa área que devia ser protegida.

Expulsão de garimpeiros

Cabe ao Governo federal e às agências como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) ou a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), em coordenação com as forças policiais, traçarem um plano para retirar cerca de 20 mil pessoas, muitas delas armadas, de uma área de difícil acesso e supervisão. “É um conjunto complexo de problemas, mas que têm de ser enfrentados porque o Governo Lula tem de mostrar que o Estado está de volta”, observa Suely Araújo.

No passado, já houve uma operação idêntica na terra dos yanomamis. Em 1992, o processo de demarcação acabava de ser formalizado e permaneciam mais de 40 mil garimpeiros de forma ilegal dentro dos limites do território. O Governo então liderado por Fernando Collor de Mello conseguiu retirar os invasores.

Para a assessora jurídica do Instituto Socioambiental (ISA), Juliana de Paula Batista, é necessário um “bom plano de articulação entre as instituições”. “Não adianta só a Polícia Federal ou o Exército irem até lá”, assevera. A primeira fase, explica ao PÚBLICO a jurista, passa pelo estrangulamento das vias de abastecimento logístico dos garimpeiros.

“Tudo entra na terra indígena yanomami apenas de avião, helicóptero ou de barco”, observa Batista. “Então é preciso fazer o fechamento de rios, um maior controlo do espaço aéreo, controlo da venda de combustível. É preciso ter agentes em grande quantidade em pontos estratégicos para impedir que entre combustível e comida para os garimpeiros, porque sem recursos eles começam a sair e com uma boa estrutura de fiscalização são impedidos de voltar”, acrescenta.

Segue-se a destruição das máquinas e veículos usados pelos garimpeiros para as actividades de exploração da terra, assim como das pistas de aterragem abertas nos últimos anos. Juliana Batista não descarta a possibilidade de haver algum nível de violência durante as operações, mas sublinha que é importante que o estrangulamento das vias logísticas seja bem coordenado.

Pelo meio, o Governo federal pode ter ainda de lidar com alguma falta de cooperação por parte das entidades estaduais. Roraima, onde se situa uma extensão considerável da terra dos yanomamis, é um estado eminentemente bolsonarista. Na segunda volta das eleições presidenciais, Bolsonaro alcançou 76% dos votos e o governador, António Denarum, é um ardente defensor do garimpo. Na praça central da capital, Boa Vista, há um monumento em honra dos garimpeiros, mostrando como a própria história da colonização deste território está intimamente ligada à exploração do ouro.

Em Dezembro, os detalhes de uma operação policial na terra yanomami foram revelados publicamente pelo próprio secretário estadual de Segurança Pública, Edison Prola, levando a inúmeras acusações de sabotagem.

A jurista do ISA lembra que a competência para fiscalizar e ordenar acções nas terras indígenas é do executivo federal, mas acrescenta que um bom entendimento com o governo estadual é sempre importante. “O Governo com certeza precisa contar com o apoio dos governos estaduais, até porque muitas vezes têm um contingente importante de forças de segurança para dar apoio nessas operações”, explica Batista.

A forma como a desocupação da terra dos yanomamis se desenrolar, em simultâneo com a apuração de responsabilidades pela crise humanitária, servirá para aferir a capacidade do novo Governo em fazer valer as suas promessas, especialmente numa das áreas em que a governação anterior era mais saliente “É a hora de uma actuação muito forte e enfática em nome da legalidade do Estado de direito”, resume a jurista.

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