Crise humanitária dos Yanomami era “tragédia anunciada” com origem no garimpo ilegal

Governo de Bolsonaro agravou crise de doenças e fome entre o povo indígena do Norte do Brasil, que tem a prospecção ilegal de ouro como uma das causas. Lula da Silva foi rápido a reagir, diz analista.

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Na Terra Indígena Yanomami, no Norte do Brasil, vivem cerca de 30 mil pessoas Reuters/DIEGO VARA

O que está por trás da crise humanitária que levou o Presidente brasileiro Lula da Silva a decretar uma emergência de saúde pública na Terra Indígena Yanomami, ao visitar o estado de Roraima? Ali se deparou com velhos e crianças com os ossos a desenharem-se debaixo da pele, barrigas inchadas pela fome e assolados por doenças que poderiam ser controladas mas que se tornaram catastróficas. A origem desta crise está no garimpo ilegal e muitos anos de degradação do sistema de saúde na Amazónia, explica Estêvão Benfica Senra, especialista em povos indígenas da Amazónia do Instituto Socioambiental.

“Não foi uma surpresa, porque a denúncia dessa situação já vem ocorrendo há alguns anos. Era uma tragédia anunciada”, diz Estêvão Benfica Senra, cientista que trabalha com o Instituto Socioambiental, uma organização não-governamental dedicada à defesa dos direitos dos povos indígenas brasileiros. “A única surpresa é que tínhamos a expectativa de que o Governo fizesse alguma coisa, mas não imaginávamos que fosse tão rápido”, salienta.

“Adultos com peso de crianças, crianças morrendo por desnutrição, malária, diarreia e outras doenças. Os poucos dados disponíveis apontam que ao menos 570 crianças menores de cinco anos perderam a vida no território Yanomami nos últimos quatro anos, com doenças que poderiam ser evitadas”, escreveu no Twitter Lula da Silva, no fim-de-semana passado, após a visita a Roraima.

Lula aponta culpas e fala em genocídio: “Além do descaso e do abandono por parte do Governo anterior, a principal causa do genocídio é a invasão de 20 mil garimpeiros ilegais, cuja presença foi incentivada pelo ex-Presidente. Os garimpeiros envenenam os rios com mercúrio, causando destruição e morte”, afirmou.

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A Terra Indígena Yanomami fica no Norte do Brasil, nos estados do Amazonas e Roraima, e foi demarcada em 1992. Tem uma área de 100 mil quilómetros quadrados e vivem lá cerca de 30 mil pessoas – que parecem poucas perante o tão grande número de garimpeiros (exploradores de metais preciosos), que invadiram o seu território ilegalmente, em busca de ouro.

“Um dos principais vectores da crise é a invasão garimpeira, que explodiu nos últimos quatro anos. Começou a crescer em 2016, mas a partir de final de 2018 e 2019, começou a acelerar muito”, explica Estêvão Benfica Senra. “O outro factor é um processo de degradação do sistema de atendimento à saúde. Outros governos já vinham tendo um desempenho bem pífio, mas a situação se agravou mais no último Governo [de Bolsonaro]”, diz. “Esses dois factores combinados têm impactos que se retroalimentam e se amplificam."

Sem saúde com Bolsonaro

A chegada de garimpeiros a uma região da Amazónia está associada a um aumento de doenças infecto-contagiosas – em especial a malária. “Os dados de 2020-2021 mostram que foram registados 20 mil casos de malária anuais no território Yanomami, para uma população de 30 mil pessoas”, diz Estêvão Benfica Senra.

“Se o sistema de saúde estivesse funcionando, haveria meios de controlar um pouco esses surtos. Só que a má gestão dos últimos anos desabasteceu postos de saúde, precarizou as estruturas de atendimento, diminuiu a qualidade e a quantidade de profissionais atendendo”, relata o investigador. Isso quando não foram os garimpeiros que, usando a violência, expulsaram os trabalhadores de saúde.

“Uma forma de controlar a malária é colher o sangue das pessoas com sintomas para identificar com o microscópio o tipo de malária que têm, e iniciar a medicação. Com o tratamento, interrompe-se o ciclo de transmissão. Mas tem relatos de postos de saúde sem lâminas para microscópio”, conta Estêvão Benfica Senra.

“Tudo isso falhou bastante no último Governo. Nas administrações anteriores já havia vários problemas estruturais. Mas nesse Governo [de Bolsonaro] houve um processo de negar sempre todas as denúncias. Isso contribuiu para acelerar essa degradação”, diz o investigador do Instituto Socioambiental.

O impacto do mercúrio

Por outro lado, o garimpo tem um forte impacto ambiental, pelo uso do mercúrio, que perdura no ambiente durante 100 anos e contamina os cursos de água, “É uma poluição que às vezes afecta pessoas que estão muito distantes do canteiro de garimpo, que ou usam a água do rio, ou consomem os peixes que acumulam mercúrio”, explica Estêvão Benfica Senra.

“Algumas pesquisas conduzidas pela Fundação Oswaldo Cruz apontam um grau de contaminação importante em várias comunidades, sobretudo ao longo do rio Uraricoera e do rio Mucajaí [em Roraima]. O nível de contaminação de mercúrio está acima do que a Organização Mundial da Saúde indica como seguro”, exemplifica. “Isso tem repercussões na saúde reprodutiva, no desenvolvimento das crianças.”

A poluição não fica só no território Yanomami: “Novos estudos têm demonstrado que peixes vendidos nas feiras urbanas da cidade de Boa Vista também têm altos índices de mercúrio. É muito provável que a população urbana, não-indígena, também esteja contaminada, sem ter consciência disso”, alerta o investigador.

Violência

Os garimpeiros trazem violência. “Nos últimos anos, a violência parece ter-se amplificado, também pela entrada de agentes ligados ao crime organizado na exploração garimpeira”, salienta Estêvão Benfica Senra. “Em Maio de 2021, houve um episódio especialmente aterrorizante: uma série de ataques na comunidade do Palimiú, por pessoas associadas a facções criminosas, com armas do mais grosso calibre, durante meses”, relata.

A violência trazida pelos garimpeiros acaba por se insinuar na própria sociedade Yanomami. “Uma das estratégias de alguns grupos do garimpo para ter acesso a determinadas áreas é aliciar adolescentes indígenas, muitas vezes dando-lhes armas. Esses adolescentes acabam frequentando corrutelas [lugarejos] onde consomem bebidas alcoólicas, muitas vezes tendo acesso a drogas”, conta Estêvão Benfica Senra.

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Um Yanomami junto a vestígios de operações de garimpo ilegal Bruno Kelly/REUTERS

Isto causa grandes tensões entre as comunidades Yanomami. “É uma marca desta invasão do garimpo. Na região chamada Xitei, em Abril, cinco pessoas morreram em conflitos internos, alimentados por essa dinâmica de armas e bebidas vindas do garimpo”, exemplifica.

Vai ser um grande desafio reverter a situação criada pela invasão do garimpo ilegal, diz. “Mas os Yanomami já passaram por uma situação muito brutal e disruptiva, que foi a primeira corrida do ouro, de 1987 a 1992”, avança Estêvão Benfica Senra. Os garimpeiros já deixaram marcas duradouras no tecido social Yanomami. “Ainda se observavam antes desta segunda invasão. As comunidades onde entraram armas ainda continuam enfrentando conflitos violentos”, relata.

A recuperação dos processos biológicos é igualmente lenta. “A primeira corrida do ouro foi uma experiência abrupta de contacto de grupos que até então não tinham relações regulares com não-indígenas. Foi uma espécie de bomba biológica que teve efeitos na saúde dessa população. Há uma transmissão, por exemplo de uma mãe que passou por período de desnutrição, para o seu filho, que não tem menores possibilidades de desenvolvimento. As repercussões desses distúrbios vão muito longe”, conclui o especialista em povos indígenas da Amazónia.

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