Morar na vida de um filho em vez de habitar o desgosto

A minha vida com o pai dela tinha descarrilado em definitivo. O meu peito, que antes era abundante na produção de leite, secou graças ao choque emocional que sofrera nessa semana.

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Bebé unsplash

Destapei mais um ferimento como quem retira a mão de uma superfície a ferver. Sobressaltei-me por não ter noção da fúria que corria dentro de mim sem que eu soubesse da sua existência, ciente de que o que mais nos afecta é provavelmente aquilo que desconhecemos. Aquilo que nos envenena em silêncio.

Diante das imagens que me atravessavam os olhos vindas do ecrã do cinema, uma sensação de agonia atingiu-me o peito. Durante a cena do filme italiano O Colibri, uma adaptação cinematográfica da obra homónima de Sandro Varonesi, confrontei-me com um facto recalcado, uma memória que julgava perdida. O protagonista do filme, Marco Carrera, sofre várias tragédias muito acima das minhas vivências e, ainda assim, longe de querer identificar-me ou fazer qualquer espécie de comparação, fui atingida por um aperto no exacto instante em que surge na tela uma cadeira de bebé com a sua neta pequena. Uma cadeira de cozinha, própria para alimentar bebés, vulgar, em plástico branco e estofada a amarelo-torrado, tal e qual a cadeirinha que em tempos usei para alimentar a minha filha.

Lembrei-me então dessa tarde em que tentei dar-lhe pela primeira vez alimentos que não fossem o meu leite, tinha ela apenas quatro meses de idade. A minha vida com o pai dela tinha descarrilado em definitivo. O meu peito, que antes era abundante na produção de leite, secou graças ao choque emocional que sofrera nessa semana. Liguei ao pediatra a pedir ajuda, a menina chorava porque eu deixara de conseguir alimentá-la com o meu corpo, como tinha feito em exclusivo até essa altura. Disse-me que acontecia muitas vezes, que o estado emocional da mãe afectava a produção de leite. Revoltei-me. Não me podia conformar com o facto de ter ficado sem leite para dar à minha filha por causa da bestialidade do pai da minha filha.

Nessa semana deixei de chorar, como tinha feito inúmeras vezes às escondidas. Tentei dar-lhe a papa comprada na farmácia como me recomendou o pediatra, mas não desisti de voltar a dar-lhe leite do meu. Insisti pondo-lhe a mama na boca, fazia dela chucha, mas tinha fé que havia de ajudar a que voltasse a produzir leite. Tenho a certeza de ter posto na cabeça que aquilo não me ia acontecer, aquilo não nos ia acontecer, a mim e à minha filha. Não ia permitir que a falta de carácter do pai afectasse a alimentação da nossa cria.

Nessa tarde em que tentei dar-lhe papas compradas na farmácia, não sentia o meu coração por causa da fúria, mas tinha o coração inocente da minha filha. Fiz o que tinha de fazer, uma pessoa faz o que tem de fazer em prol de um filho ou de alguém que se ama e que esteja ao nosso cuidado. Ficamos em segundo plano, em terceiro, ou muitas vezes fora do plano. Trocamos a fúria pelo amor que sentimos por alguém, ficamos por momentos fora do enquadramento e conseguimos manter-nos activos com um único foco: amar e cuidar.

O protagonista do filme O Colibri e a sua cadeirinha de bebé levaram-me para esse momento da minha vida. Chorei no escuro do cinema, faltou-me por momentos o ar. Doía voltar àquele dia. Mas regressar àquele momento agora também era esclarecedor. Talvez tenha sido naquele dia que percebi que morar na vida da minha filha era mais importante do que habitar um desgosto. Nem sequer ponderei ou pondero outra hipótese. Sabia que era transitório, que o tempo me devolveria à minha morada, à minha pele, que o meu coração voltaria a bater por mim e por ela.

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