Democracia e Justiça, numa encruzilhada

O Ministério Público não pode continuar ancorado no imobilismo de circunscrever apenas a alguns o exclusivo da capacitação técnica para investigar criminalidade financeira e corrupção.

Passado o tempo do interesse folclórico pela coutada do chamado macho ibérico”, os temas da Justiça penal não mais saíram do mundo mediático. Muitas vezes surpreendentes e dramáticos, senão mesmo traumáticos, os factos da criminalidade atraem leitores e espectadores sem que sejam necessárias técnicas de marketing para os fidelizar. E quando os suspeitos/arguidos provêm da política ou de esferas sócio-económicas elevadas, os “conteúdos” exponenciam, dando espaço a prolongados comentários, não só de jornalistas e juristas, mas também de uma nova turma criada na “civilização do espetáculo”, que poderíamos denominar como a dos especialistas do óbvio e da banalidade.

Nos últimos tempos, a torrente mediática encheu-se de casos; e quando um parecia esmorecer, logo era noticiado o seguinte. Ficaríamos a saber que, à exceção de uma ou outra novidade, a maioria do noticiado já se investigava há anos, estando o inquérito parado ou em sonolência, invariavelmente “por falta de meios da PJ”.

Fala-se, com insistência, em crise grave do regime democrático e em risco de tomada de poder por populistas autoritários e pelas vias formais, sem necessidade de revoluções. Recordaram-se os anos vinte do século passado e as crises sociais, económicas e políticas que precederam os autoritarismos europeus anteriores à II Guerra Mundial. A perspectiva de retrocesso – e transfiguração – dos regimes políticos de liberdades e direitos fundamentais não é, infelizmente, um mero exercício de retórica especulativa, como mostram as experiências de outras latitudes e também as de alguns estados da Europa, continente que já foi farol da filosofia política do Estado de direito. Académicos, senadores políticos e reputados jornalistas têm escrito sobre este risco; cito apenas – porque há muitos outros – O Crepúsculo da Democracia, da jornalista Anne Applebaum, e Fascismo: um alerta, de Madeleine Albright. Internamente, a reflexão também existe, mas empurrada para a margem da intelectualidade a que os media costumam chamar “catastrofista”.

No meio do tornado noticioso das últimas semanas, surpreendeu-me a reflexão de um jovem jornalista, num canal de TV nacional, referindo o perigo de falência do regime democrático interno, não como ocorrência remota, mas bem próxima e que em seu entender pode emergir, sobretudo, da utilização recorrente de factos em investigação pelo Ministério Público, como argumentário da luta político-partidária, criando uma sensação coletiva de caos e ingovernabilidade, muito perigosa para a sustentabilidade da democracia.

Como é sabido, estão iniciados vários processos de inquérito onde se investigam factos que podem qualificar-se como crimes de natureza económico-financeira e de corrupção, visando autarcas, banqueiros, políticos, dirigentes de clubes de futebol, representantes de igrejas, médicos, magistrados, etc. Boa parte deles já corre há vários anos, alguns aproximando-se de prescrição. As investigações, por muito complexas que possam parecer, não devem e não podem prolongar-se por cinco, dez anos, apenas na fase de inquérito, porque há que contar com o tempo das fases processuais posteriores.

A delonga destes processos, sem que se vislumbre o seu fim no curto prazo, contribui para alimentar a ideia de falência do regime democrático, do qual a Justiça – efetiva – é um pilar fundamental.

E ainda que sejam curtos os recursos humanos e técnicos disponíveis, será a falta de meios a única e permanente causa de atrasos? Não haverá também desajustamento de métodos? A revisão crítica das metodologias de investigação deveria ser feita e com urgência.

Em tempos já longínquos, procuradores seniores, experientes e de inquestionável exigência profissional eram chamados a realizar investigações em processos de forte repercussão social, com resultados reconhecidos, pois o MP era, e ainda é, um corpo uno e hierarquizado, cujos magistrados modelam a sua atuação por parâmetros de legalidade e objetividade.

Aquando da revisão do Estatuto em 2019, visando melhorá-lo e actualizá-lo à medida das exigências do exercício profissional no sec. XXI, escrevi neste mesmo jornal que “o Ministério Público (MP) teria a ganhar se, com arrojo, (…) se descartasse um pouco da sua institucionalidade lenta e concêntrica e pusesse em funcionamento uma estrutura leve, rápida, elegante e moderna, sem perder o toque de classicismo que a sua longa existência cunhou como corpo do Estado que promove a Justiça”.

Porém, as soluções de organização introduzidas como novidade vieram a revelar-se todo um modelo oposto à agilidade; criaram-se sub-departamentos destinados à investigação criminal económico-financeira e à corrupção, cujos quadros são preenchidos por procuradores especializados, sendo que a especialização dos candidatos assenta na circunstância de já terem exercido em departamentos de investigação criminal durante algum tempo e, eventualmente, terem investigado criminalidade desta natureza! Ora, a especialidade, a existir, pode ser truncada ao fim de três anos, se os procuradores pretenderem mudar-se para outras áreas de trabalho, o que acontece quase todos os anos.

Estou em crer, pelo que aprecio, que um modelo tão seccionado e imutável potencia a cristalização de métodos de trabalho e proporciona uma ideia de superioridade profissional reativa ao escrutínio. Neste contexto, introduzir alterações para melhorar resultados pode revelar-se tarefa de muito difícil execução para qualquer dirigente, sendo de esperar feroz e mediatizada oposição, sob o argumento – falso, senão mesmo calunioso – que se pretende violar a autonomia interna dos procuradores e “condicionar” as investigações.

Que o momento é de crise, não há dúvida! Anseia-se por soluções pragmáticas e de eficácia, com o objetivo único e transparente de dar andamento às investigações já iniciadas em tantos e tão complexos processos, que parecem entorpecidos.

O Estatuto (MP) contempla normas de excepção gestionária e caberá à instituição ler os sinais dos tempos, convocando os mais habilitados e disponíveis, para uma dedicação em verdadeira task force. Há magistrados de excelência, espalhados pelo país, totalmente capacitados para exercerem de forma condigna qualquer função a que sejam chamados, num espírito escrupuloso de serviço público.

O MP não pode é continuar ancorado no imobilismo de circunscrever apenas a alguns – selecionados através de regras cegas – o exclusivo da capacitação técnica para investigar criminalidade financeira e corrupção, sob pena de incorrer numa atitude autofágica, com prejuízo para a causa da instituição, da justiça e, ao fim e ao cabo, da democracia.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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