Chuva de sapos e peixes: verdade ou ficção?

Não faltam narrativas ficcionais em que criaturas caem do céu, como na cena dos sapos do filme Magnolia, de Paul Thomas Anderson. Mas é mesmo possível “chover” seres vivos?

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Um desenho de George Cruikshank, de 1835, representando o ditado anglo-saxónico "chover cães e gatos", o equivalente a "chover a potes" em português DR

Há relatos bíblicos que mencionam “chuvas” de anfíbios. E não faltam, no universo da ficção, narrativas em que pequenas criaturas caem do céu – a cena dos sapos no filme Magnolia (1999), de Paul Thomas Anderson, e dos peixes no livro Kafka à Beira-Mar (2002), de Haruki Murakami, são dois bons exemplos. Mas é mesmo possível, no domínio do real, “chover” seres vivos?

Comecemos pelo óbvio: quando se fala em “choveranimais, estamos a recorrer à ideia de precipitação para descrever episódios em que seres vivos caem do céu. A chuva é um fenómeno natural no qual o vapor de água da atmosfera se condensa, precipitando-se na forma de gotas. Anfíbios e peixes não se liquefazem, claro está, mas fenómenos meteorológicos como tornados teriam força suficiente para erguê-los e, em seguida, deixá-los cair noutros locais.

“Fenómenos do tipo tornado podem produzir movimentos ascendentes bastantes fortes, por vezes superiores a 120 quilómetros por hora. Se isto ocorrer a partir da superfície de um lago, por exemplo, e existirem peixes de pequena dimensão mesmo junto à superfície, não é de todo impossível que estes seres vivos sejam aspirados por estes fenómenos”, afirma ao PÚBLICO o meteorologista Paulo Pinto, que trabalha Divisão de Previsão Meteorológica e Vigilância do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

Paulo Pinto explica que estes movimentos podem ser tão fortes que, por vezes, até carrinhas podem ser aspiradas pelo cone de um tornado de grande magnitude. Ora bem, se até um automóvel pode ser aspirado – e isto está comprovado, por vezes até a uma grande distância da superfície –, com uma pequena rã, ou um peixe que pesa uns quantos gramas, pode obviamente acontecer o mesmo”, refere o meteorologista da secção de radares do IPMA.

O que é uma tromba de água ?

Um artigo do Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos (EUA), que procura dar resposta precisamente à questão sobre a qual nos debruçamos, afirma que “muitos cientistas acreditam que as trombas de água podem ser responsáveis ​​pelas chuvas de sapos e peixes”. A expressão “trombas d’água” é usada informalmente em Portugal para designar fortes chuvas, mas, neste caso, referimo-nos a um fenómeno distinto e mais intenso.

“Uma tromba de água é um fenómeno meteorológico que consiste num turbilhão de vento, muitas vezes violento, cuja presença se manifesta por uma coluna nebulosa ou cone nebuloso invertido em forma de funil que emerge da base de um cúmulo-nimbo, e por um tufo constituído por gotículas de água levantadas da superfície do mar”, indica a página do IPMA.

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"Waterspout" (1983), de W. H. Drake, ilustra o fenómeno meteorológico da tromba de água DR/Library of Congress

No livro It’s raining fish and spiders (2012), elaborado pelo meteorologista Bill Evans a pensar o público jovem, lê-se que “trombas de água já arrastaram diferentes espécies de peixes, enguias, minhocas, pássaros, águas-vivas, lulas e até jacarés, arrastando-os por muitos quilómetros.”

Bill Evans reitera a ideia de que, quando um tornado ou tromba de água passa por um lago ou lagoa, objectos de diferentes formas e tamanhos podem ser projectados a longas distâncias. O autor menciona, a título de exemplo, o caso de Kate Walker, de Dartford, em Kent, Reino Unido. Kate teve o “maior susto da sua vida” quando, em 2008, vinte caranguejos caíram do céu enquanto ela estava a apanhar feijões no quintal. Casos como este, mas envolvendo outros animais, já foram notícia em diferentes países.

“Trombas d'água e tornados podem levar criaturas vivas para as nuvens, onde a temperatura pode chegar a -16 graus Celsius, e os animais ficam cobertos de gelo. Às vezes, as criaturas caem no chão vivas, mas assustadas. Muitas vezes o depósito acontece numa área onde o sol está forte e o céu é azul, deixando todos os que presenciaram o evento a questionar-se sobre o que aconteceu”, refere Bill Evans.

Observação em Lousisiana, EUA

Numa rara referência ao tema em publicações revistas por pares, o cientista Alexander D. Bajkov partilha em 1949, num comentário na revista Science, observações do fenómeno. No texto, o investigador de origem russa descreve uma chuva de peixes que teve lugar em Marksville, Louisiana, EUA, na manhã do dia 23 de Outubro de 1947. Bajkov relatou as próprias experiências para contrariar um “cepticismo” que acreditava prevalecer na comunidade científica.

Alexander Bajkov, na época, trabalhava como investigador no Departamento de Pescas e Vida Selvagem dos EUA. Ele e a mulher estavam a tomar pequeno-almoço num restaurante quando, de repente, a empregada de mesa veio informar que havia peixes a cair do céu. O casal saiu logo do estabelecimento para recolher espécimes: tratava-se de espécies locais, em estado “absolutamente fresco e próprio para consumo humano”.

“Havia zonas da rua principal, nas proximidades do banco (a meio quarteirão do restaurante), com uma média de um peixe por metro quadrado. Automóveis e camiões passavam por cima deles. Caíam também peixes nos telhados das casas. Eu próprio recolhi na rua principal, e em vários metros da rua Monroe, um grande frasco de espécimes perfeitos e preservei-os em formalina, a fim de os distribuir por vários museus”, relata Bajkov no comentário da Science.

Tanto Bajkov como James Nelson Gowanloch, um biólogo que liderava o departamento de pescas em Lousiana, notaram a presença de “vários tornados pequeninos” na véspera da observação descrita na Science.

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Comentário do investigador A.D. Badjkov piblicado na revista científica Science em 1949 Science Magazine/DR

“Ocorrências desta natureza são raras e nem sempre reportadas, mas apesar de tudo são bem conhecidas. […] Não há qualquer razão para desvalorizarmos a evidência científica. Muitas pessoas nunca viram tornados, mas não duvidam da existência deles, e aceitam o facto de que o vento pode levantar e carregar objectos pesados. Por que razão os peixes não podem ser erguidos da água e arrastados por um redemoinho?”, indaga o autor, que em 1949 estava afiliado ao Laboratório das Ostras, no Mississípi, nos EUA.

O que são correntes ascendentes?

Paulo Pinto diz que há ainda um outro tipo de fenómeno meteorológico que pode deslocar pequenos seres vivos: as correntes ascendentes. Estas correntes são fazedoras de nuvens. São elas quem leva o vapor d’água para níveis mais elevados, promovendo a passagem do vapor para o estado líquido e a formação de nuvens.

A maior parte das correntes ascendentes não têm uma componente vertical de velocidade de baixo para cima que seja muito forte. Contudo, há tempestades especiais, que se chamam supercélulas e, nalguns casos, estão associadas a muita instabilidade”, refere o meteorologista do IPMA.

Na atmosfera, o ar pode subir de forma espontânea, quando fica mais quente do que está nas suas vizinhanças. É isso que corresponde à instabilidade atmosférica, fazendo com que correntes de ar relativamente estreitas consigam ascender. Quanto maior for a instabilidade, quanto maior for a diferença de temperatura entre a massa de ar pequenina na coluna e o ar circundante, maior a velocidade ascendente”, continua a explicar Paulo Pinto.

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O filme Magnolia inclui uma famosa cena em que sapos caem abundamente do céu DR

Em tempestades deste tipo (supercélulas), podemos ter correntes ascendentes fortes com uma velocidade da ordem dos 125 quilómetros por hora, ou até superior. Em fenómenos destes, a partir da superfície, não me espanta que eventualmente peixes ou animais de pequena dimensão possam ser aspirados, subindo na nuvem”, conclui.

E até quando as criaturas podem subir? “Até as forças que contribuem para este movimento ascendente serem superiores ao campo gravítico. Quando o peso dos objectos for superior a esta força ascendente, eles começam a cair”, esclarece Paulo Pinto.

Hesitação e cepticismo

Apesar de existir um volume considerável de relatos, observações e materiais iconográficos de “chuvas” de animais, parte da comunidade científica parece evitar discorrer sobre o tema, manifestando hesitação ou incredulidade. O artigo elaborado pela secção de referência científica da Biblioteca do Congresso sublinha ainda que muitos relatos históricos são fornecidos em segunda ou terceira mão, “tornando sua confiabilidade questionável”.

O PÚBLICO pesquisou em repositórios científicos artigos sobre o tema e encontrou escassas referências. “Um tornado é um fenómeno de dimensão espacial extremamente reduzida, tanto do vórtice (pode ser da ordem de poucos metros) como do ciclo de vida, que é muito curto. Isto quer dizer que é difícil saber muitas vezes saber quando ocorreu, quando mais observá-lo. Não é fácil para a comunidade científica debruçar-se sobre algo que é muito difícil de identificar e seguir dado a sua reduzidíssima escala temporal e espacial”, recorda Paulo Pinto.

“Além disso, devido à popularidade e ao mistério em torno das histórias sobre a chuva de animais, algumas pessoas relatam falsamente uma chuva de animais depois de ver um grande número de vermes, sapos ou pássaros no chão após uma tempestade”, refere o texto da Biblioteca do Congresso, o que também contribui para o cepticismo à volta deste fenómeno.

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