João Canijo duplamente em concurso no Festival de Berlim

O autor de Sangue do Meu Sangue vê finalmente não um mas dois filmes nas secções competitivas no festival: Mal Viver no concurso principal, Viver Mal na paralela Encounters.

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Mal Viver é uma das metades do novo díptico de João Canijo Midas Filmes

Com o anúncio, esta manhã, do programa competitivo da edição 2023 do Festival de Berlim, eis que um dos mais consistentes cineastas veteranos portugueses chega finalmente ao concurso principal de um dos “três grandes”. Não que João Canijo (n. Porto, 1957) nunca tenha passado pelo triângulo Berlim-Cannes-Veneza; acontece apenas que Ganhar a Vida (2001) e Noite Escura (2004) marcaram presença na Croisette através da secção paralela Un Certain Regard, e que Mal Nascida (2007) desfilou, por sua vez, na "passadeira" secundária de Veneza, a secção Horizontes (a mesma que na última edição premiou Lobo e Cão, de Cláudia Varejão).

A estreia de João Canijo a concurso em Berlim faz-se não com um, mas com dois filmes: na competição principal, lugar a Mal Viver, o primeiro filme português em liça desde Colo, de Teresa Villaverde (2017); na secundária Encounters, dedicada a títulos formalmente mais experimentais e inaugurada em 2020 (valeu nesse ano o prémio FIPRESCI a A Metamorfose dos Pássaros, de Catarina Vasconcelos), aparece o “filme-espelho” Viver Mal.

Os títulos simétricos explicam desde logo a proximidade entre as duas obras, rodadas ao mesmo tempo, com muitos dos actores da “companhia" habitual do cineasta (Anabela Moreira, Rita Blanco, Leonor Silveira, Beatriz Batarda, Cleia Almeida, Nuno Lopes…), e partilhando uma mesma unidade de tempo (alguns dias) e de espaço (o Hotel Parque do Rio, em Ofir), mas não de acção. Mal Viver/Viver Mal agrupa quatro histórias que decorrem em simultâneo, mas que Canijo “isolou” narrativamente umas das outras, repartindo-as pelos dois filmes.

Em Mal Viver, que tem argumento original de João Canijo com contribuições criativas do elenco, o foco está nas tensões do grupo familiar que detém a propriedade do hotel, e que debate o destino a dar-lhe: a dona, Rita Blanco, as filhas e a sobrinha que o gerem quotidianamente — Anabela Moreira, Cleia Almeida e Vera Barreto — e a neta, Madalena Almeida, que acabou de perder o pai.

Viver Mal, por seu lado, podia ser um “filme em episódios”, explorando os dilemas individuais de três grupos de hóspedes ali alojados naqueles mesmos dias: um casal em crise (Nuno Lopes e Filipa Areosa) e dois “trios” de mães, filhas e amores (formados por Leonor Silveira, Lia Carvalho e Rafael Morais, de um lado, e Beatriz Batarda, Carolina Amaral e Leonor Vasconcelos, do outro) evoluem num tríptico de histórias separadas, inspiradas por peças de August Strindberg.

Inicialmente pensado como um único filme, centrado no jeu de massacre entre as mulheres do hotel, com os hóspedes a fornecerem reflexos subterrâneos, o desdobramento da obra em dois títulos nasceu da surpresa do realizador ao perceber que o material “secundário” abria portas que mereciam ser exploradas.

Decorrendo as quatro histórias no mesmo local e no mesmo período temporal, e ainda que a opção do realizador tenha sido a de concentrar-se separadamente em cada uma (uma posterior versão para televisão irá “alinhá-las” e intercalá-las cronologicamente), inevitavelmente elas estão sempre a interpelar-se, a entrecortar-se, a sobrepor-se, como eco, coro, comentário umas das outras. Sem surpresas para os conhecedores da obra de Canijo, todas transportam um profundo mal-estar familiar, ancorado no conflito entre mães e filhas, com o matriarcado a emergir como dialéctica amor/ódio ou vida/morte.

O díptico exibe a veia dramática imersiva e naturalista que o cineasta vem explorando, mas com uma dimensão formal adicional trazida pela directora de fotografia Leonor Teles, a autora (também premiada em Berlim) de Balada de um Batráquio. Janelas, espelhos, reflexos sublinham as tonalidades quentes de um conforto modernista que transforma o hotel numa espécie de “confessionário” para aquelas personagens em crise.

Mal Viver/Viver Mal, co-produção da portuguesa Midas com a francesa Films de l’Après-Midi, é o regresso do cinema português à competição principal do certame alemão, onde se revelaram por exemplo Tabu, de Miguel Gomes, ou Cartas da Guerra, de Ivo Ferreira, mas é também um caso raro, dada a presença paralela dos dois títulos em secções competitivas. Não foi o caso em 2020, quando a organização da Berlinale exibiu o ambicioso projecto multidisciplinar DAU, de Ilya Khrzhanovsky: colocou então Natasha na competição principal, mas remeteu Degeneratsia para fora de concurso. E também o Festival de Cannes hesitou em abrir aos três capítulos das Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes (2015), a competição oficial, indecisão que acabaria por levar a produção do tríptico a estreá-lo na paralela Quinzena dos Realizadores.

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