Quando há sol não é para todos

Sou médico, fico feliz quando sinto que fiz a diferença, quando salvo vidas, e salvamos muitas, crianças, mulheres, velhos e novos, inclusive homens de grupos extremistas.

Estava com medo. Não sou diferente dos demais, uma guerra assusta. E os contornos que esta guerra civil atingira, com uma enorme exposição mediática, faziam-me crer que seria diferente das outras. Esta foi a minha quarta guerra enquanto médico a trabalhar para os Médicos sem Fronteiras (MSF). A experiência ajuda a lidar com as emoções.

É doloroso entrar no avião, deixar a sofrer as pessoas de quem mais gosto. Ao olhar pela janela do avião, despeço-me da minha querida cidade do Porto com uma lágrima, não sabendo se não será a última vez que vejo este meu grande amor, e tudo o que ele representa para mim. Tenho medo, mas nem hesitei quando me foi proposto ir para a Síria. As minhas motivações superam largamente os meus medos, talvez ao lerem este texto compreenderão porquê.

Por vezes perguntam-me: “Como é possível arriscares a tua vida?” Normalmente sorrio, enquanto respondo para dentro em silêncio: “Como é possível não o fazer?”

Na Turquia, já bem perto da fronteira com a Síria, onde se reunia esta equipa que iria reabrir o hospital no Norte da Síria, que foi evacuado pela crescente ameaça do Estado Islâmico, o coração aperta, e sinto um nó na garganta quando nos explicam no mapa os cerca de 250 quilómetros que teremos de fazer de estradas na Síria, onde os bombardeamentos são frequentes. E começo aqui a sentir a guerra.

Nessa noite, pensei ouvir bombardeamentos, pois já estava muito perto da Síria, mas provavelmente era o meu imaginário.

No dia seguinte viajamos até à fronteira, e, nas imediações, o nosso campo de visão é invadido por campos de refugiados, e vemos nas suas caras a dor de um povo órfão de um país, com uma alma sofrida e massacrada.

Nessa noite, a última antes de passar a fronteira, vamos beber a última cerveja porque na Síria estaríamos proibidos, e, naquele que era o único bar, um grupo de homens sírios bebe e dança uns com os outros como se não houvesse amanhã. Leio no seu desprendimento uma mistura explosiva de alegria, por terem fugido à guerra, com a tristeza profunda de quem abandonou a sua amada pátria. Foi muito intenso. Fez-me pensar.

Bem de manhãzinha, atravessamos a fronteira a pé. A polícia turca carimba o nosso passaporte, e depois fazemos uns quilómetros a pé bem carregados, em sentido contrário ao dos refugiados. E do lado de lá, na Síria, não há ninguém para nos carimbar o passaporte, mas sim uma série de homens armados, de aspecto duvidoso, são do Free Syrian Army, a oposição ao regime que luta pela democracia, contra o ditador Bashar Al-Assad.

As nossas duas carrinhas têm o logótipo dos MSF, assim como escrito em árabe “Médicos sem Fronteiras”, e é apenas isto que nos protege. Atravessamos uma boa parte do Norte da Síria, e fiquei colado à janela a absorver a paisagem, absolutamente lunática, com vilas e aldeias abandonadas, onde as marcas de guerra, com casas bombardeadas, não deixam dúvidas dos porquês de quem largou tudo.

Em alguns momentos passamos por 4x4 de caixa aberta com metralhadoras enormes, que nos dão um friozinho na barriga, bastante desconfortável, a que nos vamos habituando. Torna-se normal a presença da máquina de guerra.

Talvez o momento que guardo com mais carinho até hoje terá sido o da nossa chegada à vila, que seria a minha casa e onde se encontrava o pequeno hospital. Os locais sabiam da nossa chegada, e celebraram este momento de uma forma que até dói na alma tentar descrever. Não consigo segurar as lágrimas ao transmitir-vos isto: gritos de alegria, olhos húmidos de emoção, palavras e abraços quentes a pessoas (nós) que não conheciam. A felicidade daquele povo transbordava em cada suspiro: os Médicos sem Fronteiras voltaram!

Sentem que nem todos os abandonaram, a nossa presença personifica a esperança de quem já não sabe a que se agarrar. E só aí, sem ter salvado nenhuma vida, já clarifiquei na minha cabeça que valeu a pena ter deixado os meus queridos a sofrer em Portugal. Percebem agora?

As pessoas viviam com medo duplo: do sanguinário ditador que não hesita em matar quantos pode, e este oportunismo de grupos radicais islâmicos que moldavam e aterrorizavam todo um povo bastante moderado e humanamente fantástico.

Numa gelada manhã de Inverno, na minha inocência, apreciava um bonito nascer do sol, num céu azul até perder de vista, e comentei com os sírios que trabalhavam comigo: “Que lindo dia de sol!” Mas a resposta foi pronta e muito clara: “Está um dia horrível, o céu está limpo, eles vão voar!” Engoli em seco, congelei em silêncio, e não tardou muito a avistar um MIG da Força Aérea síria, a sobrevoar a zona, a escolher os alvos a bombardear.

É no mínimo estranho sentirmo-nos um alvo, só porque sim. E aí, dei por mim a desconstruir uma verdade universal, da minha visão mágica e holística da vida e da sua verdadeira essência: “Quando há sol é para todos!” Não! Para alguns, um dia lindo significa temer pela vida e olhar os céus à mercê de maldades atrozes, impotentes perante a força da ganância pelo poder.

“Quando há sol não é para todos!”

Várias vezes nos refugiámos num bunker do hospital quando éramos sobrevoados por aviões ou, pior ainda, por helicópteros. Assim como passei noites no bunker da casa, quando os rockets aleatórios faziam tremer o chão estrondosamente, mas senti-me bem e motivado, pela magnitude do significado que dava à presença dos MSF num cenário tão complicado.

Sou médico, fico feliz quando sinto que fiz a diferença, quando salvo vidas, e salvamos muitas, crianças, mulheres, velhos e novos, inclusive homens de grupos extremistas, que se calhar noutra circunstância nos poderiam querer fazer mal, mas nós não julgamos, nós salvamos vidas.

E guardo com um prazer indescritível momentos de horas e horas de trabalho para cumprir a missão a que me propus, e que define todos aqueles que acreditam nos mesmos ideais que eu.

E será essa a minha grande conquista pessoal: as vidas que salvei, e que no imediato me fazem sentir especial e me motivam para continuar, mas esta é apenas uma das razões que me fazem tanto querer ir.

A outra é bem maior. A outra é por ti que me estás a ler, é por todos os que sei que os MSF representam por este mundo fora, é pelos milhares que não se conseguem fazer ouvir, mas que não querem mais guerras.

Eu, tu, nós, os Médicos sem Fronteiras e muitos mais levam à letra a premissa que sustenta a humanidade: todos os seres humanos são iguais.

E o meu convívio de grande proximidade com o povo sírio, em que nas suas histórias de vida me imaginava, vezes sem conta, no exercício que, embora doloroso, é onde encontro a minha alma mais bonita e acima de tudo mais honesta: “E se fosse a minha família? E se fosse a minha casa? E se fosse o meu país? Que pensaria de uma inteira humanidade que (n)os abandonou?”

Lá passei o meu Natal. Tive saudades, mas não me custou muito. Custou-me, sim, o dia em que me fui embora. Um dos nossos tradutores, agora amigo, Faut, foi-me levar à fronteira por questões de segurança.

Odeio despedidas, são demasiadas emoções, mas esta foi claramente a pior. Vinha-me embora, a caminho da minha segurança e conforto, e assim virava costas a pessoas que sei, porque o provaram, que davam a vida por mim, e foi neste turbilhão de emoções que Faut, de sorriso na cara, à medida que me afasto de mochila às costas, me diz: “Não te esqueças de nós, Gustavo!”, e de rajada respondi: “Nunca, meu querido amigo, nunca”, bati no coração com muita força e sorri, rapidamente virando as costas para que ele não visse, que me ia desfazer em lágrimas...

E com isto podia contar-vos mais mil e uma histórias, para que exercitassem algo que tem tanto de difícil como de importante: a capacidade de termos empatia por vidas que nos parecem longínquas. E depois, apenas e só, agir como gostaríamos que agissem connosco.

Honestidade e justiça porque, “quando há sol, não é para todos”.

Foto

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor dos Médicos sem Fronteiras

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