Peça desculpas, senhor Presidente

Este pedido de desculpas endereçar-se-á muito mais ao futuro do que ao passado. E menos se parecerá com um julgamento, com réus. Será apenas o reconhecimento das raízes de velhos problemas.

Portugal deveria pedir desculpas. Nesta frase, estimado leitor português, “Portugal” não é você. Também não é o seu pai, nem seu tio, nem seu avô. Portugal só pode pedir desculpas simbolicamente, através de uma figura institucional que o represente diante do mundo. Portanto, se o estimado leitor não ocupa neste momento a cadeira da Presidência da República, ou a do primeiro-ministro, ou a do número 7 da seleção nacional de futebol, não se preocupe, ninguém lhe está a cobrar nada.

Portugal deveria pedir desculpas, sim. Nesta frase, o verbo “dever” não tem força jurídica, e não está condicionado a qualquer consequência de punição nem de recompensa, caso o faça ou não faça. Ele é apenas um imperativo moral, e está conjugado no futuro do pretérito porque refere-se a algo que poderia ter acontecido posteriormente a uma situação no passado. Ou seja, já vamos tarde.

Mas ainda que tarde, Portugal deveria pedir desculpas. Nesta frase “pedir desculpas” não quer dizer mudar o passado. Também não quer dizer “indemnizar”, que é outro verbo e chama outra conversa. Não quer dizer humilhar-se, autoflagelar-se, muito menos fraturar identidades. Pedir desculpas, como qualquer criança é capaz de aprender, é simplesmente um gesto de empatia. Indicativo não de fraqueza, mas de grandeza de espírito. O exercício do perdão (o pedir e o conceder) talvez seja a mais central das premissas cristãs. Por isso é espantoso que logo o país de Fátima ainda não o tenha feito.

“Pedir desculpas pelo quê?”, perguntará a estimada leitora, embora já tenha um palpite. E é isso mesmo que pensou. Que outro grande fardo carregamos em consciência colectiva, senão o do nosso passado colonial?

Sempre que agitamos estas águas emerge um coro de vozes contestadoras. A primeira de todas é a que diz: “Nunca escravizei ninguém, nunca colonizei ninguém, por que haveria eu de pedir desculpas?”. Já ouvi isto muitas vezes. Caso algo do género tenha ocorrido ao estimado leitor, é favor reler o primeiro parágrafo. Já a voz que vem de seguida é um pouco mais elaborada: “De que adianta pedir desculpas por algo consumado há tanto tempo?” Aí já conseguimos identificar pelo menos dois princípios que vale a pena pôr em questão. O primeiro é a desqualificação dos acontecimentos só por terem ocorrido num passado distante, como se já os tivéssemos ultrapassado completamente. O segundo é a desqualificação do próprio pedido desculpas, por considerá-lo incapaz de resolver o que quer que seja.

Começo pelo primeiro. Não é muito difícil perceber que este passado de que falamos, parecendo tão distante, está absolutamente infiltrado no presente. Quanto mais não seja, porque falamos do momento histórico que lançou os fundamentos do que viria a se tornar o nosso mundo moderno. Toda a sua organização geopolítica foi moldada e determinada pelas idas e vindas do colonialismo. Quais países seriam primeiro e quais seriam terceiro mundo, quais desenvolvidos e quais subdesenvolvidos, quais industrializados e quais meros fornecedores de matéria-prima e mão-de-obra barata. Em outras palavras, as consequências daquele passado distante são tão presentes hoje quanto a luz das estrelas, que continuam a chegar até nós toda noite, ainda que elas próprias já tenham desaparecido há milhões de anos.

Aliás, quando dizemos “passado distante”, de que distância falamos? Pensando numa das práticas mais abomináveis do nosso colonialismo, a escravidão, é sabido que Portugal só se livra oficialmente do seu último resquício na década de 1960, com a revogação do “Estatuto do Indigenato” nas colónias africanas. Estará ele assim tão distante? A partir de quanto tempo decorrido deixa de fazer sentido um pedido de desculpas? Terão as violências um prazo de validade, como os iogurtes? Não esquecer: crimes contra a humanidade não prescrevem.

Pronto, usei a palavra crime. É a deixa para a entrada de outra voz sempre presente nestas discussões. Estão a ouvir? “Mas naquela época não era crime!”, ela diz. Sim, estimada leitora, é verdade. Então não seria anacrónico pedir desculpas por uma ação que não era considerada errada na altura em que foi cometida? Minha resposta: errado para quem? O Estado que lucrou com a escravidão eu tenho a certeza que não a considerava errada. Mas e se perguntássemos a quem era vendido? Aos torturados nos porões de navios e nos pelourinhos do novo mundo? Aos que nem lá chegaram, atirados no fundo do mar como calculada margem de prejuízo? Às violadas que deram à luz a nossa tão celebrada miscigenação? Aos filhos separados das mães? Às mães separadas dos filhos? Será que nos dirão que nada de errado lhes estava a ser feito?

Já não podemos fazer-lhes esta pergunta. No entanto, olhemos ao redor. Estão aí os seus descendentes. São os que hoje lideram as taxas de desemprego e pior remuneração. São os que mais chances têm de viver em casas sobrelotadas, de abandonar os estudos e de ser presos. No Brasil, são de longe as vítimas mais frequentes de homicídio, de feminicídio e de violação. Em Portugal nem nos damos ao trabalho de identificá-los no censo. Seus ancestrais não foram ouvidos, mas não precisamos fechar os olhos a quem está aqui, do nosso lado. E é a partir deste olhar, do agora, que se começa a responder à segunda parte da questão: será útil um pedido de desculpas?

Um tweet que li recentemente: “As pessoas não se incomodam em receber uma herança, e portanto em receber um dinheiro que nem sequer estavam vivas para fazer. Entendemos bem o conceito de riqueza geracional. Mas negamos que exista trauma e pobreza geracionais.”

É evidente que um pedido de desculpas, sozinho, não irá curar o trauma histórico, nem corrigir as injustiças do nosso tempo. É preciso fazer muito mais. Mas ele talvez possa desobstruir caminhos para uma superação. Sendo assim, este pedido de desculpas, ao contrário do que possa parecer, endereçar-se-á muito mais ao futuro do que ao passado. E por estar voltado para o futuro, menos ainda se parecerá com um julgamento, com réus e sentenças. Será apenas o reconhecimento das raízes de velhos problemas.

Penso que ele também não encerrará as conversas e disputas sobre o colonialismo e o seu legado. Mas passará a ser um ponto de partida incontornável para o debate, tirando-o do perigoso terreno da honorabilidade e do orgulho nacionalista, e posicionando-o numa arena muito mais produtiva e importante, entre as questões de justiça social. Que a partir dele, todos nós, portugueses e imigrantes, possamos dialogar sobre esse trauma sem tomá-lo como insulto pessoal, e sem tampouco sermos silenciados por nomeá-lo.

Mas eis que aparece a última voz do coro dos descontentes: “Só falas de Portugal, Portugal… E os outros países?”. A ela, estimado leitor, bastaria dizer que dois errados não fazem um certo. Mesmo assim, vejamos: o pedido de desculpas mais antigo por participação na escravidão moderna veio em 1985, do Vaticano, no papado de João Paulo II, em nome de toda a Igreja Católica.

Autoridades do Benin, em 1999, e de Gana em 2006, pediram desculpas pela sua própria participação no tráfico de escravizados. Em 2001, o parlamento francês aprovou a Lei Taubira, que reconheceu a escravatura e o comércio de escravizados praticados desde o século XV como crimes contra a humanidade. Em 2006 e 2007, Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, deu declarações pedindo desculpas pela participação do Reino Unido no tráfico. A Igreja Anglicana já o havia feito.

Em 2008, o congresso estadunidense apresentou um pedido formal de desculpas aos afro-americanos pela escravidão e segregação. Em 2009, o então Presidente do Peru, Alan García, pediu perdão aos afro-peruanos pela exclusão que sofreram por causa da escravatura e pela discriminação vivida desde a época colonial. Em 2017, em visita a Gana, o ministro das Relações Exteriores dinamarquês, Anders Samuelsen, também pediu desculpas pela participação de seu país no tráfico de escravizados. Em 2022 o primeiro-ministro holandês Mark Rutte pediu desculpas formais pelo papel histórico do seu país na escravidão, além de anunciar a criação de um fundo para o combate ao seu legado nos Países Baixos e nas ex-colónias. Em 2005, em visita ao Senegal, na Ilha de Gorée, o Presidente brasileiro Lula da Silva pede perdão pela escravidão no Brasil.

Quis deixar este por último porque em 2017, também em Gorée, o Presidente português Marcelo Rebelo de Sousa teve uma grande chance de adicionar Portugal a este crescente grupo, mas preferiu tergiversar. Só não fez pior que o rei de Espanha, que ao receber em 2019 uma carta do Presidente mexicano López Obrador solicitando um pedido de desculpas pelo massacre de seus povos indígenas, respondeu com uma malcriada nota de repúdio desconsiderando completamente a hipótese.

Não deixa de ser espantoso que, entre os países europeus que mais emprestaram suas bandeiras a navios negreiros, os dois países da Península Ibérica sejam ao mesmo tempo os que mais o fizeram, e os que menos tocaram no assunto depois.

Parece até que dói pedir desculpas. Mas não dói, garanto. E posso provar. Portugal já o fez uma vez. Um pedido direto, inequívoco, e literalmente gravado na pedra, em um monumento em Castelo de Vide, onde em 1989 o Presidente Mário Soares declarou: “Em nome de Portugal quero pedir perdão aos judeus das perseguições que foram vítimas na nossa terra.” Não há relatos de mortos nem feridos por esta declaração. A vida seguiu, o Presidente continuou seu mandato, e até se reelegeu dois anos depois. Ou seja, há mais de 30 anos já sabemos: é seguro pedir desculpas!

No ano passado o primeiro-ministro António Costa fez um ensaio interessante em Moçambique, ao pedir desculpas pelo massacre de Wiriyamu. O caminho está a ser feito, mas ainda há muito a trilhar. O legado da escravidão se presentifica todos os dias na forma das mais variadas injustiças e violências. O combate a ele tem muitas frentes. Práticas e simbólicas. Pedir desculpas está ao nosso alcance, e nos engrandecerá como país. É preciso tentar.

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