Trabalhadores com direitos de fachada

A preocupação do Governo de Macau com a nova lei sindical foi permitir a constituição de uma espécie de associações de trabalhadores engajadas na manutenção de um clima patriótico de pseudo-harmonia.

Num momento em que em Portugal e na Europa se multiplicam greves e manifestações laborais, há estados, alguns de um socialismo sui generis, onde os direitos dos trabalhadores são a última das preocupações políticas e sociais, ainda que pontualmente possa haver greves que colocam o poder político em sentido.

Liberdade sindical, contratação colectiva e direito à greve são direitos reconhecidos aos trabalhadores portugueses como fundamentais (artigos 55.º a 57.º da Constituição). O mesmo acontece em muitos outros países e territórios. Mas não em todos onde os portugueses estiveram.

Apesar de tais direitos não estarem previamente regulamentados no tempo colonial, o ponto 2 da Declaração Conjunta (DC) luso-chinesa sobre a questão de Macau referia expressamente a permanência das leis anteriormente vigentes e a garantia de as futuras contemplarem o exercício dos direitos de associação e de greve.

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Declaração onjunta luso-chinesa sobre Macau foi assinada em 1987 DR

Na secção V do Anexo I desse instrumento de direito internacional, respeitante ao Esclarecimento do Governo da RPC sobre as políticas fundamentais respeitantes à Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), elucidava-se que os compromissos assumidos incluíam a futura liberdade “de organização e de participação em sindicatos” e “de greve”.

Mais tarde, em 31/3/1993, o Presidente Jiang Zemin promulgou a Lei Básica (LB) de Macau que no art.º 27.º postulou o direito de os residentes gozarem de liberdade de expressão, imprensa, edição, associação, reunião, desfile, manifestação e do “direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e greves”.

Consequentemente, em 3/12/1999, a RPC notificou o director-geral da Repartição Internacional do Trabalho, na sua qualidade de depositário da Convenção n.º 87 da OIT, que versa sobre a Liberdade Sindical e a Protecção do Direito Sindical, para a continuação da aplicação da referida Convenção na RAEM.

Volvidos que estão quase 36 anos sobre a assinatura da Declaração Conjunta e mais de 22 sobre a entrada em vigor da LB, foi finalmente aprovada na generalidade, em 16/1/2023, sob proposta do Governo, a primeira lei sindical de Macau. Pelo caminho, ao longo de mais de duas décadas, foram reprovados pela Assembleia Legislativa uma dúzia de projectos de lei visando regular o exercício da liberdade sindical e o direito à greve.

Dir-se-ia ser a aprovação desta lei sindical um motivo de satisfação. Não sei bem se assim será, pelo menos para os trabalhadores e residentes de Macau, tantas são as especificidades.

O secretário para a Economia e Finanças esclareceu ser a nova lei sindical de Macau uma “lei com características próprias. Tão próprias que ao fim de décadas de luta dos trabalhadores não contempla o direito à negociação colectiva, nem regula o direito à greve, os quais continuam assim afastados do ordenamento jurídico local. Em pleno século XXI, num país governado por um partido comunista que venera o capital desde que não perturbe os seus equilíbrios internos.

Até quando continuarão esses direitos ao largo, perante a ausência de qualquer compromisso quanto à calendarização do tratamento legislativo dessas matérias, também não se sabe. A ausência da regulação da negociação colectiva e do direito à greve suscitou críticas por parte de apenas dois deputados, os únicos que se abstiveram na votação na generalidade, já que todos os demais aprovaram a proposta governamental.

A preocupação do legislador macaense com estas matérias foi tão longe que, como salientou um eminente jurista que entretanto se mudou para paragens mais acolhedoras, a lei sindical não só não consagra esses direitos dos trabalhadores reconhecidos há muitas décadas em todo o mundo (em Portugal é mesmo obrigação do Estado promover a contratação colectiva), como restringe o eventual exercício do direito à greve com a afirmação expressa de que a realização de actividades por parte do sindicato não pode “afectar os serviços públicos necessários para o funcionamento básico da sociedade”. Quais sejam essas actividades e serviços ninguém sabe. Mas é de perguntar para que servem sindicatos sujeitos a uma férrea tutela oficial numa sociedade onde os trabalhadores não podem usar os seus principais instrumentos de luta?

Todavia, paradoxalmente, a Lei relativa à defesa da Segurança do Estado não deixa de ser chamada para verificação da idoneidade de um dirigente sindical. O trabalhador que tenha sido condenado em pena de prisão ao abrigo dessa lei, não poderá integrar o órgão social de um sindicato, salvo se tiver sido reabilitado. Com a amplitude, discricionariedade e a quantidade de formulações vagas que estão na moda, será fácil afastar dos sindicatos ou federações todos os indesejáveis na perspectiva da autoridade.

Outro aspecto a realçar é que a filiação em organizações internacionais que não sejam exclusivas de trabalhadores fica sujeita a autorização prévia do chefe do Executivo. Os sindicatos estão obrigados a informar trimestralmente as autoridades laborais da sua participação em actividades, ou da co-organização de eventos, com esse tipo de organizações constituídas no exterior, que até poderão ser de natureza humanitária.

Igualmente por legislar, no que constituirá mais um reconhecimento da discriminação legal entre residentes e não-residentes, ficou a possibilidade de os trabalhadores não-residentes se poderem organizar em sindicatos, ainda que aqui laborando legalmente há dezenas de anos, e embora estes sejam os mais explorados, em especial por parte de agências de recrutamento ligadas ao empresariado e a alguns “caciques”, muitas vezes com a passividade das autoridades.

Uma leitura rápida do que foi aprovado, tanto mais que a contratação colectiva e a greve ficaram de fora, permite facilmente concluir que o que se pretendeu não foi consagrar a existência efectiva de direitos laborais e de sindicatos apostados na defesa dos trabalhadores de Macau.

A verdadeira preocupação do Governo de Macau, com a nova lei sindical, foi a de permitir a constituição de uma espécie de associações de trabalhadores participantes e engajadas na manutenção de um clima patriótico de pseudo-harmonia e paz social. E que sob a aparência de sindicatos não façam ondas e possam contribuir, de cada vez que houver de prestar contas, para uma imagem menos prejudicial da RAEM junto da OIT e de outras organizações internacionais.

Convém ter isso presente na hora da avaliação da bondade do legislador e do cumprimento dos compromissos assumidos pela RPC perante o Estado português e os residentes de Macau.

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