Guilherme Farias, professor sub-25: “Faço greve pelos meus direitos, mas sobretudo pelos meus professores de outros tempos”

O professor do 1.º e 2.º ciclo, de 24 anos, é da Covilhã e está colocado numa escola pública na Amadora. Fez greve na terça-feira. Testemunho na primeira pessoa, a partir de uma entrevista.

Foto
Guilherme Farias é da Covilhã e está colocado numa escola pública na Amadora DR

“Percebi que queria ser professor muito novo, por volta do 5.º ano. As primeiras vezes que comecei a dizer que quando fosse grande queria ser professor foram antes até, no 1.º ciclo. Principalmente porque gostava imenso dos meus professores, identificava-me muito com eles.

Falo especialmente dos meus dois professores do 1.º ciclo, os meus dois professores primários, que me abriram muitas portas. Gostava sobretudo da forma como conseguiam balançar o rigor e a exigência aliados a um carinho muito grande, uma afectividade muito grande e um sentido de humor incrível, que me fez pensar que afinal um professor não é uma figura assim tão austera como estávamos habituados a pensar. Essas figuras foram muito marcantes por isso mesmo, porque eram divertidas, mas ao mesmo tempo também eram muito exigentes e, quando tinham de me chamar a atenção, também chamavam.

É uma das coisas que tento sempre com os meus alunos, nos estágios da faculdade e agora na profissão, criar desde cedo uma relação. Cada vez mais acho que sem uma relação as coisas fluem muito mais lentamente e que, com essa relação estabelecida de afectividade, as coisas correm muito melhor e eles próprios estão mais disponíveis para aprender.

Quando dizia que queria ser professor, a grande maioria dos meus amigos e familiares chamava-me um bocadinho à Terra e dizia-me para pensar bem. Que se calhar não é o momento certo, não é a profissão certa. Curiosamente, foram esses meus professores, com quem eu fui confidenciando também ao longo do tempo, que me deram sempre uma força extra a dizer se é mesmo isso que tu queres, avança e investe nessa tua vontade.

Terminei a licenciatura em Educação Básica em Castelo Branco em 2019 e depois tirei o mestrado em Lisboa, na Escola Superior de Educação de Lisboa, em Julho 2021. Neste momento, ensino Matemática e Ciências ao 5.º e 6.º ano. Também tenho a valência de professor do 1.º ciclo.

Foto
Guilherme queria ser professor desde criança dr

Dei as minhas primeiras aulas durante a pandemia. Tivemos de fazer coisas que nunca pensávamos que iríamos fazer, nomeadamente trabalhar quase desde as 8h da manhã até às 8h da noite, às vezes. Como os alunos estavam online, não podíamos ter o mesmo número de horas online que teríamos presencialmente. Então, o que nós fazíamos era dividi-los em grupos, ou seja, eles ao fim ao cabo acabavam por ter menos tempo de aulas, mas nós fazíamos esse tempo vezes três grupos. Eu tive estágios em que não conheci os meus alunos presencialmente, só os conheci através de um ecrã.

Termino o meu mestrado em Julho de 2021 e a partir daí entro em Setembro numa escola particular em Lisboa, onde tinha estagiado. Podia ter concorrido ao público a nível de ofertas de escola, mas era tudo horários incompletos e então esperei para poder concorrer ao concurso nacional, que só podia fazer para o ano lectivo seguinte. Estive um ano a trabalhar numa escola particular, concorri, e este ano entrei em Setembro no público, inesperadamente.

Digo inesperadamente porque, enfim, desde que comecei a estudar nesta área e comecei a informar-me mais, sempre me disseram que para entrar na escola pública ainda ia levar uns bons anos. Eu concorri precisamente para perceber em que ponto é que estava nas listas de colocação. Não estava de todo à espera de ser colocado nem numa fase inicial, nem numa fase posterior, por isso até só reduzi a minha hipótese de colocação para horários completos e anuais, ou seja, ainda reduzi mais a minha possibilidade de entrar. Infelizmente ou felizmente, havia falta de professores e acabei por entrar.

A grande maioria dos meus colegas está a trabalhar ainda no ensino privado. A maioria deles também não teve a mesma disponibilidade que eu em sair de casa. Como eu tive a sorte de já estar em Lisboa e de já estar habituado à cidade e não me importar de ficar cá a trabalhar, arrisquei e entrei. Muitos dos meus colegas não tiveram essa oportunidade e acabaram por se cingir ao ensino particular, que também tem muita falta de professores, neste momento.

Pus sempre a linha dos meus limites bastante larga. Eu queria trabalhar, ponto assente, queria dar aulas e começar a trabalhar o mais cedo possível, de preferência no ensino público. Abri esses horizontes e disse logo para mim mesmo que, mesmo que calhasse numa escola longe de casa, eu iria aceitar. Iria em frente com essa aventura, quase. É sempre um pouco difícil, porque é uma dinâmica familiar que se quebra e é todo um conjunto de situações novas, de responsabilidades novas: afinal, é um primeiro emprego, não é? Mas mesmo assim está valer muito a pena por todas as aprendizagens.

Nós, professores contratados, só temos contratos no máximo de um ano. Eu tive essa sorte de ser de um ano completo e agora as coisas estão a funcionar da seguinte forma: vou ter de voltar a concorrer agora em meados de Março ou Abril para o concurso relativo ao próximo ano lectivo. Posso voltar a ficar colocado na mesma escola, é uma hipótese, posso ser colocado noutra escola no distrito de Lisboa ou fora e ainda não ser colocado.

Eu desejava ficar na mesma escola, como é óbvio, dava-me uma segurança diferente e há essa possibilidade se da parte da escola e da minha parte se quiser renovar o contrato. Isto é uma coisa recente, que o Governo implementou há pouco tempo, precisamente pela falta de professores, porque antigamente não havia esta hipótese de renovação.

É uma instabilidade que me traz alguma ansiedade, por vezes, porque não me permite fazer planos a longo prazo em termos da minha vida pessoal. Eu podia escolher já estabelecer-me num determinado sítio, criar outro tipo de dinâmicas, e não o posso fazer porque posso estar a hipotecar a minha vida profissional. Arrendo casa sozinho e é uma dificuldade.

Ou seja, neste momento, opto por por dar primazia à minha vida profissional, foi uma escolha que eu fiz e o que fica para trás são planos da vida pessoal.

A nossa escola e o nosso agrupamento fez greve hoje [terça-feira]. Não foi a minha primeira greve, tinha feito uma na escola privada onde estava, por outros motivos, relacionada com igualdade de salários. Não sou sindicalizado. Posso dizer que ainda não sou porque o que faço é sempre primeiro observar de fora para tirar as minhas próprias conclusões. Reconheço nos sindicatos uma força muito grande ao nível das negociações e ao nível da capacidade de mobilizar muitos colegas meus.

Não havia nenhum delegado sindical no nosso agrupamento. Portanto, para realizarmos uma reunião de índole sindical, houve primeiro dois colegas meus que se tiveram de sindicalizar, para elegermos posteriormente um delegado sindical e só a partir desse momento é que pudemos realizar a nossa reunião. E daí também um bocadinho o atraso na nossa organização enquanto agrupamento e na realização da greve. Depois juntámo-nos, docentes e não docentes, também auxiliares e técnicos, reunimo-nos para decidir a melhor forma de nos manifestarmos. Houve várias hipóteses, desde as greves a fundos de greve, mas decidimos que a nossa melhor forma de nos manifestarmos era obtendo também o apoio de outras partes sem ser professores, nomeadamente os encarregados de educação, mostrando-lhes a nossa luta e tentando fazer com que percebam a nossa luta, e muitos deles perceberam.

A escola onde eu trabalho não fechou porque o número de professores e funcionários que não aderiu à greve foi suficiente para manter a escola aberta.

Quando as pessoas à minha volta me perguntam as minhas motivações para fazer greve, eu explico que posso de facto estar confortável por estar no meu início de carreira, apesar da distância, mas estou no início de carreira, estou a começar a ganhar o meu dinheiro e podia estar confortável com isso e não querer fazer greve. A verdade é que eu faço greve para lutar pelos meus direitos, mas principalmente faço pelos meus colegas, porque eles estão há muito tempo nesta profissão. Não há aqui uma questão de individualidade, é mais uma questão do colectivo.

Isto tudo vai dar a um ponto que é, esse sim, o mais importante: são os alunos. Quando nesta greve, por vezes, algumas individualidades tentaram mostrar que estávamos contra os alunos e contra os pais, isso foi muito complicado porque o caso é completamente o contrário. Nós só estamos a reivindicar os nossos direitos e a pedir uma maior qualidade para a nossa educação, precisamente por eles, pelos alunos, não é por mais ninguém.

O ponto principal pelo qual fiz greve foi uma melhoria na qualidade do ensino público, para que os nossos alunos possam ter a capacidade de aprender num ambiente em que os professores estão felizes a ensinar, porque se o professor também não estiver feliz em ensinar, claro que a educação não vai ter tanta qualidade. Sobretudo, pelos meus colegas que já trabalham há muitos anos, que já foram meus professores noutros tempos. É por eles que eu também fiz greve.

O que mais gosto no meu trabalho são as relações que estabeleço com os meus colegas e com os alunos, a partir do que eu mais gosto de fazer, que é ensinar. Gosto de sentir que vou para a escola com vontade e que gosto de dar aulas e que gosto de estar com os alunos dentro da sala, fora da sala, no recreio, a jogar à bola se for preciso nos intervalos com eles, na sala dos professores a conviver com os meus colegas. O que eu menos gosto na minha profissão é, sem dúvida nenhuma, o facto de ainda não sermos totalmente unidos. Gostava que fôssemos uma profissão mais unida. Estas manifestações têm mostrado isso. Mas para isso mudar, se calhar, precisávamos de ser todos ou quase todos para fazer esta força.

O que eu mudava já no ensino era dar oportunidade aos meus colegas que vivem longe das suas famílias, dos seus filhos, que só conseguem vê-los por vezes uma vez por mês ou às vezes até com menos periodicidade, dava-lhes oportunidade de poderem estar junto de casa.

Na minha escola não tenho muitos colegas da minha idade. Tenho colegas na casa dos 30/40 anos, a grande maioria na casa dos 50/60. Amanhã [quarta-feira] retomamos as aulas, agora está em curso a greve diária por distritos.

Nós temos alguns alunos que para eles é um dia livre, como é óbvio, mas também temos outros que já começam a ter alguma consciência sobre estas temáticas e perguntam ‘professor, porque é que agora os professores estão todos a fazer greve?’. E nós tentamos explicar-lhes que fazer greve não é só reclamar, fazer greve é o estabelecimento de uma posição, de mostrarmos que temos opinião, mostrar que temos vontade de melhorar.

Costumo dar um exemplo até. Imaginemos que um dia chegávamos à aula e que só fazíamos o que eu queria. Vocês não tinham voz para dizer o que é que poderíamos decidir nas aulas. Iam ficar chateados porque de certeza que vocês também querem ter opinião, querem ir ao quadro participar. Imaginem que era só eu que ditava tudo? Eles aí depois conseguem perceber que nós estamos a lutar por nós mas também por eles.”

Sugerir correcção
Ler 7 comentários