A realidade dos actos: ser professor é pensar a Educação

“Só é vencido quem desiste de lutar.” Mário Soares

O Ministério da Educação (ME), mais do que nenhum outro agente, deveria chamar os docentes à sua sede e, autenticamente, saber ouvir, saber as causas reais do desencanto que grassa por essas escolas. A manifestação de dia 14 de Janeiro foi, pelo Ministro da Educação, apodada de “radical”. Decerto que sim: os professores – o país – começam a pensar sobre a raiz dos problemas sociais que se aprofundam e agravam.

Referirei alguns factos que com esta manifestação estão interligados. Pode ser que o ME nos ouça. Um facto indesmentível é este: ao quotidiano burocrático (“burocrático”, como escreveu Herberto Helder) de que estamos reféns, impedindo-nos de leccionar a sério, com tempo e com saber, e com salários dignos, soma-se a indigência (é a palavra e não há outra) da maioria dos alunos. Como explicar que quase 50 anos depois do 25 de Abril os nossos jovens, na sua maioria, não saibam estar e ser na escola?

Quem conheça o dia-a-dia das escolas tem de ser honesto: leccionar hoje é, desde logo, saber que maioria dos estudantes chega ao secundário e à universidade sem saberem ler e escrever bem. Nada sabem de história, de cultura portuguesa e europeia, nada de geografia e de línguas estrangeiras, num quase total analfabetismo. É mentira? Nós, professores, não nos queixamos desta realidade? Pois isso deriva também do nosso esgotamento, da ausência de formação de professores, uma classe que deve pensar sobre a dimensão intelectual do seu trabalho. Como explicar isto?

Tento a seguinte explicação, que já noutros lugares apresentei e que não é novidade. Mas impõe-se, como digo, que nós, professores, pensemos e actuemos em face da realidade dos factos – para argumentarmos nas negociações com o ME não basta a retórica de sempre. É urgente apresentar os factos e levar à tutela uma perspectiva crítica, alargada, dos problemas da educação. Sem uma moldura – digamo-lo sem receio – intelectual da educação, reduzimo-nos à mais abjecta das proletarizações.

Como chegamos aqui? A ideologia oca dos últimos 25 anos resultou no seguinte: empobrecidos por um aparelho tentacular de estupidificação mediática que impõe a superficialidade e a ignorância como apanágio do que é cool, as turmas são hoje aglomerados de adolescentes e jovens adultos (crianças também) para quem o professor é uma figura ridícula e a ridicularizar. Filhos do hip-hop, da brutalização da vida contemporânea, sem linguagem e tendo como única formação aquilo que os media lhes oferecem, que lhes importa, de facto, a escola? Qual o valor de se tirar um curso superior neste país quando se sabe, de antemão, que quer se estude ou não todos na universidade farão um curso (diz-se) “superior”? Que ideia de mérito estamos a passar aos mais jovens.

O ME, com uma política concertada, de Governo para Governo, infantilizou o universo escolar, agiu de forma calculada para pôr alunos e pais contra professores, porque dividir é reinar. Esse tempo chegou ao fim, pois, nas escolas e universidades cada vez se levantam mais vozes contra as licenciaturas à bolonhesa, a tecnocracia como dominação, o medo como forma de existir em Portugal.

Outros dados para este debate: a televisão violenta e imoral promoveu gente sem qualquer valor na sociedade portuguesa. Como escreveu Karl Popper, a televisão, grande agente educativo das massas, com as redes sociais, contribuiu enormemente para a consolidação da ideologia oca no nosso país, degradando o gosto, submetendo os portugueses à linha de montagem do pensamento único. A escola e a universidade, o ambiente que nestas instituições se vive, espelha bem o que afirmo e prova à saciedade a relação directa entre os meios de comunicação social multimediáticos e a ideologia educativa. A prova? Professores da Telescola que, acríticos, aceitaram estar num programa estúpido no canal do Estado. Outra prova? Os jovens mergulhados no mundo virtual das diabólicas redes sociais, outro verdadeiro educador actual.

Senhor primeiro-ministro, senhor ministro da Educação, senhor Professor Marcelo Rebelo de Sousa, não devemos todos – e vós, sobretudo, conjuntamente com os professores e demais agentes – pensar, face a estes factos, para onde estamos a conduzir este país?

País dos heróis da bola, dos comentadores da camisa aberta, dos ditos “senadores” que ninguém entende por que razão são fazedores de opinião, sempre inquinados pela ideologia oca dos partidos que representam; país que, dos Gouchas e Cristinas, às estrelinhas do music-hall lusíada, tem de se perguntar: como resistir à degradação geral? Quem está a ganhar com isto? Pensar a educação significa pensar a cultura no seu todo, e, no seu todo, sem pejo, reconhecer que educar só é possível com professores, pais e governantes críticos da alienação, a outra face dos regimes totalitários.

Se Paulo Freire disse, e bem, que todo o professor digno desse nome deve ser um agente da indignação nascida do questionamento da condição humana, acrescento palavras de Mário Dionísio, insertas em O Quê? Professor?! (Casa da Achada, Lx, 2015): “além do bem-estar material (do seu projecto) o socialismo implica uma autêntica participação dos trabalhadores nas decisões gerais e sectoriais, na condução política do país afinal: não só cumprindo ordens, portanto, […] mas nelas pessoalmente intervindo. O que é diferente de apenas seguirem ou recusarem o que lhes é proposto para ser escolhido […]” (p.189). Tal só é possível com “aquele mínimo de preparação cultural (não tenhamos medo da palavra por demagogia do momento) que permite o reconhecimento aprofundado das matérias em debate e sobretudo o espírito crítico que faz parte dele e da sua coerente utilização. O ser explorado determina uma justa atitude de protesto e o mais que explicável desejo de intervir […]” (idem, p.190).

No artigo que cito, de Mário Dionísio, fala-se, a dado momento, da herança do fascismo: um ministro do tempo de Salazar e Caetano também criou o slogan “batalha da educação", a que era preciso vencer. Como vencer, se chegámos ao ponto de termos abastardado qualquer ideal de educação porque vivemos no abastardamento facilitante, autorizado por uma mentalidade burocratizada? Como vencer, se se gerou, depois do 25 de Abril, o ciclo vicioso e viciado das limitações reivindicativas da classe docente porque, sem um propósito realista de salários justos para uma classe que fosse culta, e auto-exigente, tudo redunda em nada?

Porque à indignação de que a manifestação de 14 de Janeiro é sinal inequívoco deve acrescentar-se um ideal de cultura, não esqueçamos Monteiro Lobato: “Um país faz-se com livros., isto é, com professores com profissão estável, remunerada de forma a serem cidadãos livres, com poder de compra para adquirir livros, frequentar a cultura – fazer, no fundo, uma democracia forte em tempo de ameaças reais à nossa vida em comunidade. Ao PS cabe, sem dúvida, compreender as palavras de Mário Soares.

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