Desabafos em Janeiro e sugestões aos pequenos e médios produtores

Dois eventos de Dezembro, o arranque prematuro das apresentações em Janeiro e a onda anti álcool são razões para algumas reflexões sobre o modo como o sector do vinho comunica.

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Durante um encontro Prior Lucas/Giz Direitos Reservados

Era véspera do Dia de Reis e já um enólogo nos ligava para saber se num qualquer dia de Janeiro haveria eventos agendados porque queria fazer a apresentação dos seus vinhos. Dias depois, a responsável de uma agência de comunicação perguntava-nos se tínhamos disponibilidade para o lançamento de um espumante, no dia 16.

Por tradição, Janeiro e Fevereiro eram meses de descanso do estômago, do fígado e do cérebro dos jornalistas que se dedicam ao vinho e à alimentação, com um interregno de um ou dois dias pelo Barroso para compreensível avaliação do estado dos salpicões e das pencas, mas, hoje, quando olhamos para o calendário, já são poucos os dias livres entre a terceira semana de Janeiro e todo o mês de Fevereiro. Há de tudo: lançamentos de vinhos, debates, conferências, viagens entre Moselle, Badajoz e o Pico, concursos e provas de azeites, de queijos, de butelos e até de ouriços, já para não falar do rally nacional da lampreia. Análises de rotina em Janeiro?! O melhor é esperar pela Quaresma.

No caso do vinho e de outros produtos alimentares o mundo chegou a uma situação de excesso de oferta face à procura, pelo que os produtores têm de captar a maior atenção possível da comunicação social e dos canais de distribuição. O problema é que a maioria dos produtores insiste em estratégias de divulgação dos seus vinhos à moda do século XX. Isto é, almoços que se prolongam pela tarde e jantares que vão madrugada fora, todos com a mesma narrativa e só com os seus vinhos, claro!

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E isto quando há uma preocupante escassez de jornalistas, de jornais e de críticos de vinhos face à dinâmica avassaladora da produção, pelo que, a dada altura, não há capacidade de esticar, porque, lá está, um crítico, à semelhança do que acontece com o produtor, só tem um estômago, um fígado e um cérebro. Existem soluções milagrosas para dar a volta ao assunto? Não, mas há modelos que podem ser mais utilizados. E com vantagens para todas as partes, em particular para os pequenos e médios produtores, visto que, para os grandes, esta conversa interessa pouco.

Em Dezembro passado, Joaquim Arnaud convidou para a sua casa, em Pavia, dez produtores de vinho, dois de azeite, um de queijo, um de enchidos, um de mel, um de arroz, outro de temperos e um padeiro. Quinze dias depois, o produtor Prior Lucas convidou para um jantar na sua adega outro produtor da Bairrada, Luís Gomes (vinhos Giz), aos quais se juntou a equipa de Ferran Arnau, do Égide Hotels.

Cada um destes eventos teve um formato próprio, mas, para o que agora interessa, quem neles participou (críticos, somelliers, comerciais e muito público no caso de Pavia), pôde, num só momento, provar vinhos de diferentes produtores. E isto é bastante eficiente no que diz respeito à gestão do tempo e dos recursos financeiros de todas as partes.

Quem esteve no jantar Prior Lucas/Giz teve a oportunidade de conhecer dois produtores que fazem um trabalho excelente na recuperação de vinhas velhas da Bairrada, provar os seus vinhos lado a lado, avaliar a sua relação com comida feita por uma equipa soberba (os nossos aplausos), perceber como se deve cozinhar correctamente bacalhau e, ainda, reflectir sobre os comentários de coleccionadores de vinhos que estavam à mesa. Ou seja, não se tratou de mais um almoço/jantar no Solar dos Presuntos com um único produtor (a falta de imaginação que vai na cabeça dos produtores da nação). Tratou-se de um encontro de aprendizagem proveitoso porque foi um três-em-um. O tempo que se poupou.

O caso do Joaquim Arnaud & Friends foi diferente e é o modelo mais aproximado daquilo que defendemos como alternativa aos almoços e jantares chapa 5. Quem passou por Pavia teve a oportunidade de provar vinhos de dez adegas e, no mesmo espaço, conhecer outros bens alimentares, num ambiente relativamente tranquilo e não em modo de feira clássica de vinho, tudo organizado por Luís Gradíssimo, do Enophilo.pt, visto que Joaquim Arnaud é mais relações públicas do que outra coisa. Ou seja, aqui aprendeu-se com relativa calma porque houve o vagar dos adultos para a conversa, enquanto dezenas de crianças brincavam tranquilamente e em segurança nos pátios. Mais tempo poupado.

Este modelo jamais se aplicará aos grandes produtores que, obviamente, nunca lançarão os seus vinhos ao lado com outros produtores (era só o que faltava), mas para pequenos e médios produtores — aqueles que não têm acesso facilitado aos meios de comunicação social, mas merecem toda atenção —, reunirem-se num mesmo evento alargado faz todo o sentido, nasça esse evento a partir da amizade entre produtores de diferentes regiões ou a partir da criação de clubes de produtores que se dedicam com mais afinco a uma casta — sim, à laia dos Baga Friends. São hipóteses. É fundamental substituir a velha ideia de que ‘o meu vinho é melhor do que o teu e por isso não me misturo’ pela tese de que ‘juntos ganhamos mais’.

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Joaquim Arnaud (ao centro) convidou quase duas dezenas de produtores e houve tempo para os adultos reflectirem e as crianças brincarem. dr

Há, todavia, algo que deveria merecer reflexão por parte de todos os produtores (pequenos e grandes) quando desenham as estratégias de apresentação dos vinhos: a onda anti-álcool que se está a formar a partir do Norte da Europa, onde, regra geral, nascem a bom ritmo movimentos de higienistas fanáticos por causa de certos comportamentos bárbaros caseiros, mas que eles, por ignorância e arrogância, acham que são idênticos em toda parte. A procissão ainda nem chegou ao adro.

Não obstante os excessos de consumo que se assistem em toda a parte (é degradante ver teenagers, quase sempre estrangeiros, no Cais do Sodré a emborcarem vinho pela garrafa às 8 da noite) e não obstante a reiterada defesa no consumo de vinho de forma responsável e civilizada por parte do sector, os produtores devem ter a capacidade de demonstrar que o vinho é algo que faz parte da nossa história, da nossa cultura, da nossa alimentação e da nossa convivência em sociedade.

Como? Por exemplo — e é só um exemplo — trazendo para os eventos de lançamentos dos seus vinhos outros produtores de bens alimentares (os jornalistas de vinhos não escrevem só sobre vinhos), com criadores culturais de diferentes artes e com o envolvimento das famílias — como muito bem fez Joaquim Arnaud. Devemos mostrar aos líderes de certos movimentos radicais, com calma e inteligência, que o vinho faz parte da nossa vida em sociedade e que não é um líquido que se usa em competições de coma alcoólico entre sexta-feira e sábado à noite para resolver depressões em diferentes graus.

Assim, os produtores deveriam esquecer a lengalenga dos comerciais que vivem dentro das folhas Excel e que só se interessam por apresentações clássicas nos restaurantes que compram paletes dos seus vinhos. Deveriam arriscar, experimentar, juntar-se. Nem é apenas pela defesa do estado de saúde dos jornalistas (o que dá sempre jeito); é, também, pela defesa do seu modo de vida. De que vale apregoarmos aos sete ventos que em 40 anos fizemos, com a viticultura, a maior revolução que alguma vez ocorreu num sector agrícola em Portugal se continuamos a comunicar como no século XX? Puxem pela imaginação, se fazem favor, que nós faremos o mesmo.

P.S. — Para que não fiquem dúvidas: defendemos, sempre, o consumo moderado de vinho e de forma civilizada (fazê-lo de outra forma é insultar o vinho), assim como defendemos que o sector tem de estar inteligentemente preparado para se defender dos movimentos radicais.

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