Falar com quem já partiu

O irracional – o milagre de perceber o outro sem sentidos envolvidos – torna-se racional: aconteceu, e isso é que interessa. Sente-se. Vive-se. Desfruta-se. Maravilha.

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"Tenho um guru. Um mestre que me orienta quando preciso" Zahra Amiri/Unsplash

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Apaixonam-me as relações humanas. A interação que temos uns com os outros. E as interações que não temos. Que não acontecem. Por muitos que as procuremos. Já nos aconteceu a todos interagir com determinadas pessoas, sejam conhecidas, amigas ou familiares, e sentir que nunca vamos além das trivialidades, que nunca passamos do superficial. Que tudo quanto se diz e ouve é banal. Insípido. Vazio.

Contudo, com outras pessoas, por vezes até pessoas que não conhecemos ou que mal conhecemos ou até que já partiram, sentimos que mesmo as coisas que ficam por dizer são compreendidas, como se a individualidade se fissurasse e expusesse inteira para o outro e fossem partilhados significados sem barreiras ou filtros. Não há comunicação mais crua e honesta.

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"Parece que nos conhecemos desde sempre."

"Comunicamos sem sequer abrir a boca."

"Entendemo-nos de olhos fechados."

Sentimo-nos nus. Vulneráveis. Especiais. Dotados de uma energia de uma incrível força, capaz de atravessar o ar entre um e outro sem deixar outro rasto que não o da perceção do significado partilhado. Um e outro apoderam-se de parte do universo do outro, incorporam-no.

Como um milagre.

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milagre

mi.la.gre | miˈlaɡr(ə)

nome masculino

  1. facto extraordinário ou inexplicável pelas leis da natureza que é atribuído a causa divina ou sobrenatural
  2. intervenção sobrenatural
  3. figura de cera que o povo oferta aos santos em cumprimento de um voto
  4. figurado – coisa extraordinária de que se não está à espera ou que parece incompreensível
  5. figurado – maravilha

Fonte: Infopedia.pt

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O irracional – o milagre de perceber o outro sem sentidos envolvidos – torna-se racional: aconteceu, e isso é que interessa. Sente-se. Vive-se. Desfruta-se. Maravilha.

Tenho um guru. Um mestre que me orienta quando preciso. Não há aqui qualquer relação com religião. Trata-se de alguém que respeito e em quem confio. Como um segundo pai.

Quando tenho dúvidas, pergunto-lhe a opinião. Às vezes apenas mentalmente, à distância de meia dúzia de quilómetros. E penso, de mente aberta, pronto para mudar de opinião a qualquer momento, no que me diria.

Através deste método, ocorreram-me, por mais de uma vez, novas perspetivas sobre determinados assuntos. Esoterismo? Sim, na perspetiva de se tratar de algo misterioso e enigmático. Milagre? Também. Encaixa perfeitamente no número 5 da definição que reproduzi acima: "maravilha". Um processo mental resultante da incorporação do universo do outro. Maravilha.

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"É o meu anjo da guarda", oiço uma jovem com cerca de 20 anos partilhar com outra da mesma idade. "Sinto muitas saudades dela e nunca deixámos de conversar. Eu partilho as coisas que me acontecem, peço força, conselhos e orientação. Sinto que olha por mim. Quando quero respostas, procuro-a e imagino o que me diria", continua.

No vazio, comunicação bem-sucedida sem sons, imagens ou gestos. Sinais de vida, continuidade, iluminação, eternização. Maravilha.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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