Há alimentos a extinguir-se da face da Terra. Conseguiremos salvá-los?

No livro Eating to Extinction, o jornalista britânico Dan Saladino conta 40 histórias de produtos ameaçados e explica como os humanos têm vindo a destruir a diversidade que os alimentava.

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Dan Saladino na European Food Summir, em Ljubliana, Eslovénia NINO VERDNIK/BLENDA

Na série televisiva The Leftovers, parte da população mundial desaparece de um momento para o outro sem que exista uma explicação para o fenómeno. A comparação pode parecer forçada, mas há algo de semelhante naquilo que o jornalista britânico Dan Saladino descreve no seu livro Eating to Extinction – The World’s Raraest Foods and Why We Need to Save Them. Só que aqui o desaparecimento não é de humanos, mas sim de plantas e alimentos. E não se dá de um momento para o outro, mas lentamente. Tão lentamente que, na maior parte das vezes, nem o conseguimos ver.

Dan Saladino é mais conhecido como uma das vozes do The Food Programme, da BBC Radio 4, e foi nesse papel que começou a cruzar-se com histórias de alimentos misteriosamente desaparecidos. Ou talvez não tão misteriosamente. Se a imensa variedade de plantas e de sabores que existia no passado está cada vez mais reduzida, há um responsável por isso: a espécie humana.

“O projecto começou quando me apaixonei pela Arca do Gosto da Slow Food, um enorme catálogo de tradições relacionadas com a comida que estão a desaparecer”, conta ao PÚBLICO durante a European Food Summit, que aconteceu no final de 2022 na Eslovénia e na qual foi um dos oradores. “Neste momento, há mais de cinco mil tipos de alimentos ameaçados em cerca de 150 países.”

Depois de contar muitas destas histórias para a rádio, quando o desafiaram a escrever um livro, sabia exactamente o que queria fazer. “Seleccionei as histórias que levariam os leitores por esse mundo fora. Tinha de haver uma diversidade geográfica que tocasse em todos os continentes. Depois, tive de escolher diferentes tipos de alimentos, porque não podia ser um livro só sobre queijos ou só sobre vegetais”, explica. “A parte crucial foi escolher os alimentos que pudessem falar da nossa relação com a natureza e o planeta. São 40 histórias que contam como é que chegámos aqui e desafiam as pessoas a preocupar-se com as tradições e a diversidade que está a desaparecer.”

Num excerto publicado em Setembro no The Guardian, Dan Saladino está na parte oriental da Turquia, no meio de um “campo dourado”. Estende o braço e toca numa espécie à beira de se extinguir. É assim que começa a contar a história de um tipo de trigo do qual já só restam alguns – muito poucos – campos.

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Dan Saladino Marko Delbello Ocepek

Chama-se kavilca e “tornou as paisagens da Anatólia oriental cor de mel durante 400 gerações (cerca de dez mil anos)”. Em tempos, foi a base da alimentação dos povos que aqui viviam, terá sido uma das primeiras plantas cultivadas pelos humanos e, se nada for feito, em breve já não existirá.

Os números citados por Dan Saladino são preocupantes. Das 6000 espécies de plantas que os humanos se habituaram a comer ao longo do tempo, hoje a alimentação baseia-se essencialmente em nove, das quais três – arroz, trigo e milho – constituem 50% das calorias que nos permitem viver.

Ou seja, houve uma redução drástica da diversidade, o que, além de uma pobreza em termos de sabores e texturas, significa também um risco – o que acontece se a espécie esmagadoramente dominante for atingida por uma doença? Que defesas tem uma espécie que foi seleccionada por ser altamente produtiva e não por ser adaptada a um determinado território e clima?

Que razões estão por trás do desaparecimento do kavilca e de outros alimentos? “Em alguns casos, tem que ver com o controlo que as grandes empresas exercem sobre os sistemas alimentares”, afirma Saladino. “No livro, falo do pós-guerra, quando as empresas de agroquímicos começam a comprar as empresas de sementes para depois poderem vender o pacote completo aos agricultores. Perdemos diversidade porque as sementes que essas empresas estão a produzir precisam de dar lucro e, para isso, têm de ser vendidas em todo o mundo.”

A chamada Revolução Verde, das décadas de 1960 e 70, teve esse efeito negativo sobre a diversidade, mas “havia uma preocupação genuína em relação a uma potencial fome generalizada”, sublinha o autor. “A utilização de pesticidas e fertilizantes na agricultura permitiu produzir cereais em larga escala e esse esforço teve muito sucesso. Isso foi importante, mas o resultado é que as mesmas sementeiras podiam ser espalhadas por todo o mundo – é esse o lado negativo do progresso científico.”

O colonialismo é outra das causas do cenário de extinção a que assistimos. “Conto no livro uma história ligada à chegada dos ingleses à Índia e de como mudaram as formas de cultivo. Passou a haver muito mais arroz e trigo e foram-se perdendo muitas das sementes distintivas daquele país.”

Dan Saladino declara-se um “realista”: “O que digo é que, provavelmente, precisamos de ambos os sistemas. Não podemos ignorar que há benefícios em produzir alimentos no sistema do pós-guerra e ele não vai desaparecer. Mas também penso que, para termos um sistema alimentar que seja melhor para a nossa saúde e para o planeta, teríamos de salvar os alimentos de que falo no livro.”

Um dos exemplos que apresenta é um milho que existe em Oaxaca, México, e que faz parte da alimentação das comunidades indígenas. “Os cientistas descobriram-no no final dos anos 1970 numa aldeia remota, mas só agora perceberam a razão científica que explica por que tem uma espiga tão alta: ele solta uma espécie de muco que vai pingando das raízes aéreas para o solo. As populações de micróbios desse muco, alimentadas pelo açúcar das plantas, fixam nitrogénio da atmosfera, que, por sua vez, fertiliza as espigas do milho.”

É um sistema natural, de enorme complexidade, em risco de se perder. “A ideia de as colheitas de cereais se autofertilizarem é espantosa, mas quase que se perdia este conhecimento porque ninguém percebia bem como é que aquilo acontecia.” O grande problema do homem é a sua arrogância, acredita. “Continuamos a perder coisas que nem sequer compreendemos por serem tão complexas. Fomos arrogantes no modo como decidimos controlar a natureza. Temos de pesquisar, de usar a ciência para perceber melhor estes sistemas alimentares indígenas, porque eles podem dar-nos muito mais soluções do que nós imaginamos.”

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A selecção das variedades de trigo mais produtivas fez desaparecer muitas outras Vincent Mundy/Reuters

Não faz sentido, defende Saladino, que descartemos alguns destes conhecimentos antigos. “O meu argumento é que estas tradições alimentares que sustentaram comunidades ao longo de séculos podem dar-nos pistas para uma produção alimentar que seja mais harmoniosa com as paisagens, com os animais, mais harmoniosa na relação com os nossos recursos naturais. São tradições alimentares que evoluíram ao longo de milhares de anos e não deviam ser negligenciadas como sendo primitivas.”

Mas há um risco. A grande indústria também está atenta. “O milho que descrevi recebeu logo a atenção da Mars [multinacional especializada em produtos alimentares, de chocolates a comida para animais domésticos], que viu ali um enorme potencial comercial”, diz o jornalista, que se mostra preocupado com a eventual privatização destes conhecimentos.

Estamos perante “recursos genéticos que são o resultado do trabalho agrícola de gerações e gerações, que seleccionaram e plantaram sementes”. Por isso, deixa uma pergunta – retórica, claro “Será que alguma empresa deve ser dona deste legado?” A resposta é “não”. Foi precisamente a “privatização da natureza” que nos trouxe ao lugar onde nos encontramos. “O principal argumento do meu livro é que enfrentamos enormes desafios em termos do clima, doenças de colheitas, pragas. E é por isso que precisamos de uma diversidade genética muito mais alargada do que a que temos actualmente, seja em bancos de sementes, em comunidades indígenas, em sistemas de agricultura tradicional. Isso é um bem público, que não devia ser privatizado.”

Acredita que é possível mudar o sistema alimentar que existe hoje. O que o sustenta, afirma, “são milhões e milhões de dólares e euros de subsídios agrícolas”. A mudança é, portanto, política. “Temos pessoas que acreditam na mudança e temos mecanismos para essa mudança. Mas tudo isto é político.”

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O que sustenta o actual sistema alimentar são os subsídios agrícolas, diz Dan Saladino Nuno Ferreira Santos

O optimismo que, apesar de tudo, mantém, vem de uma constatação: “Cada vez mais há políticos que não têm outra alternativa a não ser aceitar a necessidade de mudança, porque os orçamentos de saúde dos seus países estão a rebentar pelas costuras e porque os eleitores assim o exigem.”

E a indústria vai, inevitavelmente, acompanhar. “Falei com pessoas envolvidas com algumas das maiores multinacionais da alimentação. Eles querem mudar. Não sabem exactamente como fazer porque precisam de manter os accionistas felizes, mas acreditam que a mudança é inevitável, porque, com o actual sistema, chegámos já ao fim da estrada.”

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