Democracia sitiada (no Brasil, e não só)

Sejá era visível o desequilíbrio no tratamento de extrema-direita e extrema-esquerda, o execrável episódio da turba bolsonarista tem o condão de reforçar a normalização das esquerdas radicais.

Este artigo de opinião é sobre o atentado à democracia perpetrado por uma horda de bolsonaristas. Julgo, no entanto, que é melhor começar por um registo de interesses: sendo de direita, sempre mantive um imenso mar de distância entre a direita em que me situo e esta alt-right, ou neofascismo, assim cunhado por muita gente à esquerda. Sempre considerei Bolsonaro uma personalidade abjeta, da mesma linhagem de Trump. Nunca consegui perceber como alguns amigos meus (e outros na esfera pública) se colocaram ao lado de Bolsonaro “só para” o candidato das esquerdas não ganhar – “só para chatear os esquerdalhos”, como ouvi com um desdém ignorante à mistura. Na altura, alguns deles acusaram-me de ser um “esquerdalho”. Esta direita radical segue uma cartilha de valores (se me é permitido o eufemismo) que rejeito sem a menor hesitação.

A polarização em que caiu o Brasil não é boa conselheira. Porque a um radicalismo (o de Bolsonaro e seus seguidores) contrapõe-se um radicalismo de sinal contrário, no Brasil e em muitos lugares.

Sosseguem os que estiverem, por esta altura, a coçar a urticária que a frase anterior possa ter motivado: não vou esbracejar o fantasma do comunismo, como continua a fazer a boçalidade bolsonarista. O comunismo está quase morto e, descontando uns abencerragens para consumo doméstico, mortificados pela nostalgia de Moscovo tingida pela foice e pelo martelo, pouca mossa faz no presente. Contudo, a História não se dissolve. E do mesmo modo que é importante evocar os crimes nazis e fascistas como critério de oposição aos partidos de direita radical e de extrema-direita que ensaiam um branqueamento do passado, estenda-se o exercício para manter vivo o julgamento dos crimes cometidos por regimes comunistas. A menos que a memória seja seletiva e alguns títeres da democracia sejam o que são, uma farsa, imersos num caudal de desonestidade intelectual.

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Manifestação a 9 de Janeiro, em São Paulo, contra o ataque à Praça dos Três Poderes, por bolsonaristas, em Brasília Carla Carniel/Reuters

Volto ao registo de interesses pessoal: não sou, nem quero ser, advogado de defesa dos extremistas que invadiram as sedes da democracia brasileira. Avivada esta mnemónica contínua, para não serem treslidas as minhas palavras, o repúdio da boçalidade dos bolsonaristas faz-se acompanhar da consciência de quão desastrados foram. Se usasse o método especulativo do Prof. Boaventura (no dia 11 de janeiro confidenciou, neste jornal, estar “convencido de que se os EUA tivessem dados (sic) os habituais sinais de encorajamento aos candidatos a ditadores, estaríamos hoje perante um golpe consumado.”), pressentiria que as esquerdas, com as radicais à cabeça, estavam ansiosas que os bolsonaristas dessem este passo. Quando as “desconfianças” que trespassam a nossa consciência com pesadelos vivos se confirmam por ação do próprio inimigo (eu prefiro adversário), é caso para dizer: com inimigos destes, ninguém precisa de amigos – os inimigos fazem a vontade ao nosso secreto desejo de um acontecimento que não queríamos mas que, no íntimo, estávamos ansiosos que ocorresse.

Se no passado já era visível o desequilíbrio na forma como a extrema-direita e a extrema-esquerda são tratadas, o execrável episódio da turba bolsonarista tem o condão de reforçar a normalização das esquerdas radicais. E ei-lo(a)s que surgem, um(a) atrás do(a) outro(a), puxando lustro aos seus galões de eminentes democratas, com o obséquio dos bolsonaristas apedeutas.

Encontro-me entre aqueles que defendem a possibilidade de partidos de extrema-direita (como de extrema-esquerda) integrarem a paisagem político-partidária e concorrerem a eleições. A menos que seja ostensiva a ofensa aos valores democráticos em que se alicerça o regime e que, com palavras ou atos, ponham em risco a sobrevivência da democracia.

Seja ou não do nosso agrado, estes partidos têm conquistado palco com o contínuo reforço da sua base eleitoral. Eu não gosto e lamento que assim suceda. Ao contrário de alguns pensadores de esquerda radical, respeito a vontade dos eleitores que votaram nesses partidos. Uma democracia com a exclusão dos radicais de um só lado, com o alto patrocínio dos radicais do lado contrário, é uma democracia de sentido único, avessa à tolerância. Uma entorse à democracia, ou uma democracia com direito de admissão devidamente patrulhado. Uma democracia adulterada por pessoas que se autoconsideram legítimas para subirem ao pedestal de onde exibem a sua superioridade (intelectual, moral e etc.) e ditam libelos sem direito a contraditório.

Já que estas palavras podem incomodar tamanhos iconoclastas, aqui deixo mais uma heresia, glosando as palavras de Brecht (com a devida adaptação): primeiro vieram buscar os fascistas e eu não me importei; depois vieram buscar os democrata-cristãos e eu não me importei; depois vieram buscar os liberais e eu não importei; e agora vieram-me buscar mas já é tarde: como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo. Recordei-me de Brecht a propósito desta advertência do historiador Manuel Loff, na edição de 11 de janeiro do PÚBLICO: “Toda a complacência que as direitas (e não só) têm assumido com os neofascistas trouxeram-nos até aqui. Chegou a vez de não se ser mais complacente com os complacentes.”

Voltando ao “método Prof. Boaventura”, pressinto que um dia destes proíbem-se as direitas – porque não? Nessa altura, a democracia estará, enfim, perfeita. Só ocupada por gente das diversas esquerdas – até que os menos “pedronunistas” comecem a ser acossados e, das duas, uma, acabem por se alistar nos genuínos democratas de extrema-esquerda, ou sejam escorraçados para o exílio (na melhor das hipóteses).

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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