Não te queixes (nem deixes de te queixar)

Há que aliviar o peso negativo que se tem vindo a atribuir ao queixume. Há os queixinhas profissionais, é certo, e isso é coisa para se fugir a sete pés. O queixume é peçonhento.

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"Aos poucos, comecei a queixar-me menos. Depois, um dia, percebi que já não me queixava de nada" Tegan Mierle/Unsplash

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Num dos dias mais difíceis da minha vida, que acabou por se tornar no primeiro do resto da minha vida, fiz uma lista que intitulei “Plano de Superação”. Foi há 15 anos. Ainda não existiam os murais de Facebook, Instagram ou Twitter, onde diariamente pululam dúzias de indesmentíveis e infalíveis fórmulas para ser feliz, rico, bem-sucedido, famoso, bem casado, bem solteiro, bem divorciado e por aí fora. A minha inspiração foram leituras nas quais procurava um caminho, livros sobre religião e filosofia que trazia aos braçados da biblioteca do meu bairro.

No topo da lista, elaborada enquanto estava sentado no sofá, de tronco nu, a tremer de frio — a ideia ocorreu-me enquanto tomava duche e corri à procura de papel e caneta para a escrever —, escrevi “Não te queixes” (a lista tem seis itens, talvez venha a escrever neste espaço sobre as outras cinco). A letra saiu-me um pouco tremida. Olhei durante algum tempo para as três palavras e li-as repetidamente como se não tivesse sido eu a escrevê-las e o caderno se dirigisse a mim. A imaginação pode muito.

Inicialmente, a letra trémula provocou-me urticária mental. Uma grande urticária, confesso. Sempre tive a mania das coisas alinhadas, o garfo, a faca e o guardanapo aprumados com o prato, os livros na perpendicular do tampo da secretária, caneta, lápis e borracha em paralelo a distâncias iguais, entre outras coisas do género — contrassenso gigante: a minha letra é das coisas menos alinhadas que conheço. Mas, apesar da urticária que a letra trémula que provocou, resisti a soltar um valente palavrão e a riscar tudo para rescrever as três palavrinhas sem estremecimentos. Em suma, resisti a queixar-me.

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Aceitar a letra tremida foi a primeira provação da minha nova vida, uma vida em que o “Não te queixes” se tornou numa obsessão a que prestava vassalagem.

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“O quê? Nunca te queixas?”, questionam-me amiúde quando relato o episódio da lista e alego que a mesma mudou a minha vida. Respondo quase sempre da mesma forma: “O nunca é uma prisão. E eu não estou preso. Acredito que suprimir as queixas melhora a qualidade dos meus dias, mas queixarmo-nos faz parte da vida. Por exemplo, se alguém tiver um comportamento em relação a mim que me desagrada e se esse alguém não se aperceber que me desagradou, de que outra forma o vai perceber se eu não me queixar?” Há que aliviar o peso negativo que se tem vindo a atribuir ao queixume. Há os queixinhas profissionais, é certo, e isso é coisa para se fugir a sete pés. O queixume é peçonhento.

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Uma senhora disse-me uma vez que já não se conhecia sem se queixar de tudo e mais alguma coisa. Queixava-se do sol porque estava sol, da chuva porque chovia, do frio porque fazia frio, do adormecer, do acordar, de tudo. Tudo. Elevei as sobrancelhas sem saber o que lhe dizer. “Sou assim, queixo-me e pronto, alivia-me”, acrescentou. Algum tempo depois, ao lembrar-me daquela conversa, percebi o que queria a senhora dizer. A queixa incorpora-se em nós até ao ponto de tudo o que nos rodeia (e a vida em si) ser uma queixa contínua. É uma vassalagem. Um estilo de vida. Assim como o não nos queixarmos também é.

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Vende-se por aí, em sites, congressos e bloguess a fórmula do “resiste a tudo“ e do ”não te queixes” em infalíveis pacotes de sucesso propagandeados como comprimidos de ação instantânea. Cuidado. Passo a palavra a quem sabe da poda: “A vida impõe-nos limitações, traz-nos frustrações e perdas. A vida é algo assim muito trabalhoso. E por isso às vezes queixamo-nos. E isso é normal e benéfico. O problema é quando a pessoa vira as costas à própria vida, não se responsabiliza pela própria vida, age como uma vítima da vida, como se fosse uma pobre coitada a quem a vida traz muito sofrimento”, explica Nelio Tombini, psiquiatra e autor do livro A arte de ser infeliz.

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Na altura em que fiz a lista, não fazia ideia de como me levantar de manhã ou de deitar-me à noite. Não sabia. Queixava-me todos os dias de tudo. Da vida. Até de me queixar tanto me queixava. Até que o oposto, o extremo, me pareceu uma solução brilhante. (Nunca ou dificilmente o é.)

Durante um tempo, resultou. Alguma encenação ajuda a que nos convençamos que determinada fórmula resulta mesmo. Aos poucos, comecei a queixar-me menos. Depois, um dia, percebi que já não me queixava de nada. E que ao mesmo tempo trazia uma angústia no peito. O desespero não é bom conselheiro, impede a clarividência e o bom senso. O extremista da queixa transformara-se num extremista da farsa da invulnerabilidade.

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A possibilidade de dignidade é contínua, constrói-se passo a passo. A vida continua. A possibilidade da queixa também. É real. É isso o mundo.

Desesperados, animados, confusos, esclarecidos, calados, a falar, na escuridão ou debaixo de luz intensa, somos histórias e queixas por partilhar.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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