Para Lula, insurreição pode ajudar a cimentar unidade política

A reentrada da defesa da democracia como tema político reúne o consenso dos líderes dos poderes, deputados e governadores. O bolsonarismo corre o risco de afastar os apoiantes moderados.

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Lula da Silva com a presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber Reuters/UESLEI MARCELINO

Os locais que há exactamente uma semana tinham servido de cenário para a tomada de posse de Lula da Silva, sem que tivesse ocorrido qualquer acto de violência, foram exactamente os mesmos que neste domingo foram o palco da maior agressão ao regime democrático brasileiro desde o fim da Ditadura Militar.

O dia seguinte à invasão dos edifícios do Congresso, Supremo Tribunal Federal (STF) e Palácio do Planalto por uma multidão de apoiantes do ex-Presidente Jair Bolsonaro ficou marcado por várias demonstrações de unidade em torno da defesa da democracia. Os actos de violência contra os símbolos da democracia brasileira vieram mudar radicalmente a agenda e as prioridades de um Governo que está ainda nos primeiros dias. A averiguação do que se passou no domingo em Brasília e a preservação do regime passaram para primeiro plano, e isso até pode acabar por beneficiar Lula.

“Existe uma solidariedade institucional muito grande em defesa da democracia”, diz ao PÚBLICO por telefone o politólogo da Fundação Getúlio Vargas, Marco Antônio Teixeira, sublinhando os vários posicionamentos públicos de actores políticos que condenaram os actos de domingo. Para além dos representantes dos três poderes, vários deputados, incluindo bolsonaristas, emitiram notas de repúdio pelos ataques às instituições.

Logo de manhã, Lula recebeu no gabinete presidencial do Planalto – uma das poucas salas que, por ser blindada, não tinha sido vandalizada na véspera – os líderes dos restantes poderes: a presidente do STF, Rosa Weber, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o presidente interino do Senado, Veneziano Vital do Rêgo, em representação do presidente da câmara alta, Rodrigo Pacheco, que estava de férias.

Em comunicado conjunto, os dirigentes políticos máximos da República disseram rejeitar “os actos terroristas, de vandalismo, criminosos e golpistas que aconteceram na tarde de ontem em Brasília” e deixaram apelos à sociedade para que seja mantida a “serenidade”.

Com a defesa da democracia a reemergir como um assunto dominante no quotidiano político – espera-se que sejam marcadas comissões parlamentares de inquérito (CPI) para averiguar a tentativa de golpe –, o Governo de Lula acaba por sair fortalecido, acredita o politólogo Sérgio Abranches. “Do ponto de vista da política normal, da aprovação no Congresso, da atitude cooperativa entre legislativo e executivo, certamente que as condições melhoram”, diz ao PÚBLICO.

O politólogo dá o exemplo de personalidades como Lira, visto como um apoiante de Bolsonaro, mas que, à luz de um ataque tão aberto por parte dos militantes mais radicais do bolsonarismo, “passam a estar constrangidos a alinhar-se com Lula e não a manter uma atitude meio ambígua”.

Abranches também considera que a coligação que suporta o Governo, com raízes na frente pró-democrática que juntou a esquerda ao centro-direita para derrotar Bolsonaro, fica “mais forte e solidária”. “Esta acção dá-se contra um Presidente que está no seu melhor momento de legitimidade, acabou de ser eleito e ainda não frustrou ninguém”, acrescenta o especialista.

Lula também esteve reunido com os chefes dos três ramos das Forças Armadas e, ao fim do dia, encontrou-se com governadores de todos os estados, incluindo alguns aliados de Bolsonaro, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que chegou a dizer que não pretendia participar no encontro. O apoio dos governadores às acções do Governo é instrumental, sobretudo para que sejam concluídas as acções de retirada dos grupos de bolsonaristas que continuam acampados em frente de quartéis do Exército.

“Os governadores vão alinhar-se com Lula e colocar as suas polícias de prontidão para evitar que aconteçam coisas deste tipo”, estima Sérgio Abranches.

Bolsonaro em queda

A insurreição de domingo também pode marcar um ponto de viragem para o bolsonarismo como movimento político. A partir dos EUA, Bolsonaro fez questão de se demarcar da tentativa de golpe de Estado, ignorando as inúmeras ocasiões em que atacou verbalmente as instituições que foram agora visadas ou manifestou dúvidas quanto à legitimidade de Lula como candidato.

Ninguém duvida, no entanto, da enorme identificação entre Bolsonaro e os grupos que invadiram as sedes dos poderes democráticos em Brasília. “As provas de conexão entre os actos de violência política e o bolsonarismo são evidentes”, observa Abranches. Já Marco Antônio Teixeira identifica na insurreição “o bolsonarismo fundamentalista, que não admite a derrota, não está preparado para a competição eleitoral e pode até estar a acabar com a carreira política do ex-Presidente”.

Um efeito que os analistas consideram ser imediatos é a perda do apoio de grande parte do eleitorado que ajudou Bolsonaro a reunir mais de 58 milhões de votos em Outubro. Abranches estima que “80% da votação de Bolsonaro foi de votos anti-PT [Partido dos Trabalhadores], de conservadores moderados, e esses votos foram perdidos definitivamente”.

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