Regresso ao admirável (mas ainda sinuoso) mundo do jejum intermitente

Na verdade, e apesar destes protocolos serem reconhecidos pela expressão genérica “jejum intermitente”, o foco deste artigo será o estreitamento da janela alimentar e os seus potenciais benefícios.

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Alguns autores não consideram o estreitamento da janela alimentar como “jejum intermitente”, mas sim como um método distinto Mariam Arsaliaa/Getty Images

Uma rápida pesquisa no Google Trends confirma aquilo que parece óbvio para quem trabalha na área da nutrição: que o jejum intermitente continua a gerar muito interesse. Não só tendo em vista uma perda de peso eficaz, mas também uma otimização metabólica.

Apesar deste grande interesse pelo tema, é raro encontrar-se um artigo ou episódio de podcast que trate o tema de forma isenta, com espírito crítico e baseado na melhor e mais atual evidência científica. Então, propus-me a analisar, de forma profunda, a mais recente literatura e a tentar traduzi-la para uma linguagem acessível a quem não é nutricionista.

É importante começar por esclarecer que existem diferentes tipos de abordagens incluídas no conceito de jejum intermitente, e que deverão ser analisadas de forma separada. O método que todos reconhecem — que na literatura se apresenta como time-restricted eating, ou estreitamento da janela alimentar — é o que propõe estreitar o período do dia em que se come, podendo fazê-lo através de um prolongamento do jejum noturno (p.e. fazer do almoço a primeira refeição do dia) ou por finalizar o dia alimentar mais cedo (com uma merenda a meio da tarde, por exemplo).

No entanto, há outros métodos de jejum intermitente que se tornaram apelativos, especialmente fora de Portugal, como o jejum em dias alternados — que propõe fazer uma dieta muito restritiva (em alguns casos, jejum total) a cada dois dias — ou o método 5:2, que prevê comer normalmente durante cinco dias na semana, fazendo uma grande restrição energética em dois dias semanais não consecutivos.

Curiosamente, alguns autores até nem consideram o estreitamento da janela alimentar como “jejum intermitente”, mas sim como um método distinto. Esta classificação diferencial deve-se ao facto de nem sempre ter como objetivo a restrição energética, valorizando principalmente os momentos do dia em que o ser humano se alimenta, e o que isso possa trazer de implicações na saúde metabólica. De qualquer forma, sendo este o método que mais interesse gera na comunidade, que o reconhece pela terminologia jejum intermitente, é neste que focarei a minha análise, deixando os restantes para abordar num futuro próximo.

Comecemos por introduzir alguns conceitos de crononutrição, ou seja, a relação entre o ciclo circadiano e a alimentação. Parece haver evidência sólida de que uma disrupção contínua do ciclo circadiano pode trazer prejuízos para a saúde. Por exemplo, quem trabalha por turnos tem um risco maior de cancro da mama ou de acidente vascular cerebral. Também alguns ensaios clínicos mostram que trabalhar (e comer) no período noturno levam a um aumento da resistência à insulina e à alteração na expressão de genes relacionados com a reparação de DNA. Curiosamente, há alguns indícios de que, nestes horários inconsistentes, tentar alinhar sempre a ingestão alimentar com o período diurno, e numa janela mais restrita que o habitual, pode atenuar estas alterações metabólicas e até melhorar o rendimento físico e cognitivo. E é aqui que se começa a equacionar se existem eventuais benefícios mesmo para quem não trabalha por turnos, seja na perda de peso ou na melhoria metabólica.

Quando se avalia de forma conjunta toda a evidência, verifica-se que estreitar a janela alimentar em pessoas com excesso de peso ou obesidade apresenta uma ligeira vantagem na perda de peso, assim como na glicose em jejum. Mas esta vantagem parece diminuir quando se compara com grupos em que aplica uma restrição calórica sem estreitamento da janela alimentar. Ou seja, grande parte da melhoria pode dever-se à perda de peso, e não ao timing de refeições.

É importante explicar que, em termos de benefícios metabólicos, a evidência em ratos foi a principal responsável pelo delírio em torno deste tipo de estratégias. E não é para menos: foram vários os trabalhos que mostraram que estreitar a janela alimentar melhorava inúmeros parâmetros metabólicos – lípidos plasmáticos, resistência à insulina, saúde hepática, pressão arterial e até a própria composição da microbiota. Infelizmente, estes resultados não se assemelham aos dos inúmeros ensaios clínicos feitos em humanos, dos quais uma análise aprofundada retira muito do entusiasmo inicial. Os efeitos benéficos na gestão de peso, saúde metabólica e marcadores de saúde cardiovascular parecem ser modestos, no melhor dos cenários. No entanto, há alguns ensaios clínicos em humanos a mostrar resultados interessantes, sendo que a maior parte aplica uma estratégia “matinal” de estreitamento da janela alimentar, ou seja, a alimentação ocorre nas primeiras 6 a 8 horas do dia, interrompendo a ingestão a meio da tarde. Apesar do seu potencial, este é um protocolo de difícil aplicação em grande parte dos países, em que a segunda metade do dia contempla a refeição com maior impacto social — o jantar.

Caso os benefícios de um estreitamente da janela alimentar venham a ser corroborados de forma consistente, a forma como vemos a nutrição pode alterar-se de forma significativa. Para além da qualidade e quantidade dos alimentos ingeridos, o timing passaria a ser mais um determinante fundamental na definição de estratégias individuais e comunitárias, com potencial impacto na saúde pública. No entanto, a adesão a estes protocolos temporais poderá ser muito limitada pelas características socioculturais e hábitos em torno das refeições, pelo que uma análise cuidada integrada é fundamental antes de se definirem medidas.

Em suma

Admito que o corpo de evidência atual não me deixa satisfeito e que me impossibilita de afirmar com convicção que o estreitamento da janela alimentar é uma boa estratégia para a otimização metabólica ou para a perda de peso. Declarar que estas estratégias são inúteis também não revelaria grande honestidade intelectual. Resta-nos aguardar pelos próximos capítulos, esperando que investigadores apostem em protocolos de investigação robustos, que garantam a adesão dos participantes, controlem a qualidade nutricional e esclareçam se diferentes janelas temporais (p.e. comer na primeira metade do dia, ou na segunda) podem trazer resultados distintos.

Se é verdade que há um endeusamento desajustado destes protocolos por parte de alguns nutricionistas e de outros profissionais de saúde, outros existem que o criticam de forma feroz. Alegam arrogantemente que não passa de uma moda sem sentido, mas esquecem-se que, em situações de excesso de peso e obesidade, a restrição mais “tradicional” que aplicam tem uma taxa de sucesso muito baixa, e que não devem deixar de ler e interpretar evidência relativa a novas abordagens.

Portanto, é crucial que mantenhamos a mente aberta, mas muito bom senso e espírito crítico para não se retirarem conclusões precoces e que, pela sua fragilidade, possam ter de ser negadas depois. E é tudo isto que não queremos: que vejam a nutrição como algo demasiado volátil, e na qual é difícil confiar.

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