Projecto quer duplicar a população de abutres-pretos a nidificar em Portugal

Há mais de 3,5 milhões de euros em cima da mesa para garantir uma maior disponibilidade de alimento para estas aves e, também, combater ameaças como o uso ilegal de venenos e a intoxicação por chumbo.

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Abutre-preto em Espanha Juan Lacruz

Foi apresentado recentemente, e deverá durar até 2027, um projecto de conservação da biodiversidade que visa “consolidar e expandir” a população de abutres-pretos (Aegypius monachus) em Portugal e na região Oeste de Espanha. O LIFE Aegypius return é coordenado pela Vulture Conservation Foundation (VCF), organização dedicada à conservação das espécies de abutre na Europa, e quer aumentar de quatro para cinco o número de colónias de abutre-preto em Portugal, duplicando aquela que é a sua população reprodutora.

A Liga para a Protecção da Natureza (LPN), um dos vários parceiros do projecto, diz que esta população reprodutora é presentemente constituída por 40 pares de abutres, distribuídos por quatro colónias — na Herdade da Contenda, na Reserva Natural da Serra da Malcata, no Parque Natural do Douro Internacional e no Parque Natural do Tejo Internacional (PNTI).

É no PNTI que se encontra a maior colónia nidificante de abutre-preto em Portugal. Num comunicado de imprensa divulgado há três meses, a Quercus informou que, em 2022, nidificaram 31 casais no território do parque. Este número, afirmou então a associação ambientalista, não só significa que o PNTI alberga mais de 70% da população de abutres-pretos em Portugal, como dá conta de “uma tendência de recuperação da espécie” no país.

O LIFE Aegypius return pretende acelerar a “‘recolonização’ natural em curso”, melhorando a disponibilidade de alimento e combatendo uma série de ameaças. Como a do envenenamento, que será a principal, afirma ao PÚBLICO José Tavares, director da VCF. “Não é para matar abutres que o veneno é colocado. É para matar animais que predam ovelhas e causam problemas à criação de gado, como lobos e raposas”, comenta.

Sejam o alvo dos pastores ou não, os abutres são afectados pela colocação de venenos, que, diz José Tavares, constitui uma prática não apenas “lesiva para a biodiversidade”, como também “ilegal”. “O envenenamento da vida selvagem é um crime ambiental”, frisa, afirmando que, no âmbito do LIFE Aegypius return, a Guarda Nacional Republicana (GNR) desenvolverá “acções para minimizar e controlar esta ameaça”.

Chumbo em munições de caça

Outra ameaça é o risco de intoxicação por chumbo, que “continua a ser usado em munições” — e pode, portanto, ser um problema quando os abutres, que são aves necrófagas (isto é, que se alimentam de cadáveres ou substâncias em decomposição), comem restos de animais abatidos por caçadores.

“Vamos sensibilizar os caçadores para eles usarem munições alternativas, que não causem envenenamento”, refere o director da VCF, que neste dossier terá o apoio da Associação Nacional de Proprietários Rurais, Gestão Cinegética e Biodiversidade (ANPC), outro dos parceiros do LIFE Aegypius return.

Segundo explica a LPN, também serão desenvolvidas diferentes acções de gestão do habitat, quer “em torno das colónias existentes”, quer em torno de “potenciais novas colónias”. José Tavares revela que serão criados corta-fogos “em zonas estratégicas à volta das colónias”, para não permitir que os incêndios se espalhem rapidamente.

“Tudo para que, numa situação de fogo florestal — que, infelizmente, está longe de ser uma situação infrequente no nosso país —, as árvores onde os ninhos se encontram possam sobreviver”, assinala.

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A nível nacional, o abutre-preto encontra-se criticamente ameaçado Julius Rückert

Trabalhar com produtores de gado para garantir alimento

Relativamente à forma como o projecto procurará aumentar a disponibilidade de alimento, José Tavares explica que a VCF tentará convencer criadores de gado a obterem “licenças” que já podem ser emitidas e que fazem com que não seja necessário “mandar recolher para incineração” os cadáveres dos seus animais.

Desde há pouco tempo, a Direcção-Geral da Alimentação e Veterinária (DGAV) permite que se disponibilize alimento para aves necrófagas em zonas fora dos campos que se destinam especificamente à sua alimentação. Mas só se forem cumpridos diversos requisitos sanitários e se “esta forma de disponibilização de alimento” for “indicada como fundamental para o estado de conservação das espécies em causa”.

A VCF quer ajudar pelo menos 60 produtores de gado a elaborarem os pedidos que têm de ser feitos para o Governo permitir que alimentem aves necrófagas em locais específicos das suas propriedades pecuárias, ou então “fora de campo vedado”, como refere a DGAV.

“Tendo em conta a necessidade de evitar a redução drástica na disponibilidade alimentar das aves necrófagas, deve ser assegurada a disponibilidade de cadáveres e subprodutos animais fora dos campos de alimentação vedados. Esta abordagem destina-se a garantir um menor grau de artificialidade no sistema de alimentação daquelas aves, aproximando a disponibilização de cadáveres provenientes das explorações pecuárias extensivas e zonas de caça da zona de ocorrência regular de abutres em Portugal”, explicava o Governo em 2019, no despacho em que aprovava o Plano de Acção para a Conservação das Aves Necrófagas.

A nível nacional, o abutre-preto encontra-se criticamente ameaçado. “Chegou a estar localmente extinto no século XX, mas nos últimos anos aconteceu uma ‘recolonização’ natural”, contextualiza o director da VCF, que, reflectindo sobre o ​LIFE Aegypius return, fala de um projecto “​ambicioso”​.

“Vamos trabalhar numa zona geográfica que abrange toda a raia portuguesa. É um projecto complexo: mete caça, agricultura, criação de gado, incêndios... É um projecto multissectorial e ambicioso”, diz.

Ao duplicar a população reprodutora de 40 para 80 casais, o​ LIFE Aegypius return espera “levar a uma melhoria do estatuto de conservação do abutre-preto em Portugal, passando de ‘criticamente em perigo’ para ‘em perigo’ até ao final de 2027”, nota a LPN.

O projecto conta com um orçamento de 3,6 milhões de euros, sendo que três quartos deste dinheiro deverão vir do Programa LIFE 2021-2027, da União Europeia. Os vários parceiros, além dos já mencionados, incluem também a organização ambiental Palombar, a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA), a Associação Transumância e Natureza (ATN) e a Fundación Naturaleza y Hombre, uma organização não-governamental espanhola.

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