Mostrar a morte
Cuidadosamente preparadas, as imagens que têm sido divulgadas do Papa Emérito Bento XVI, no leito de morte, tranquilo, são das melhores mensagens que o Vaticano nos podia oferecer neste início do ano.
Estamos a assistir, nos media, à divulgação das imagens do Papa Emérito Bento XVI, no seu leito de morte. Percebe-se que são imagens cuidadosamente preparadas e, do que tenho assistido, rigorosamente tratadas pelas televisões. Trata-se de algo que deve merecer a nossa reflexão. Não apenas por se tratar de um líder mundial que se apresenta como falecido, mas por tratar-se de um ser humano morto.
Sabemos que a transmissão televisiva do ser humano morto, de acordo com a ética da comunicação social, reveste contornos especiais, habitualmente optando-se pela ocultação da identidade, nomeadamente do rosto, da pessoa em causa. Mas aqui, nas imagens que nos chegam do Vaticano, o Papa Emérito é-nos mostrado na totalidade do seu corpo. Com alguma distância quanto ao rosto, mas com uma grande nitidez das suas mãos envelhecidas. Temos a imagem de uma Papa velho, tranquilo e morto. Trata-se, por isso, das melhores mensagens que o Vaticano nos podia oferecer neste início de ano. No respeito pela memória de quem teve a coragem humilde de autoavaliar a sua finitude, retirando-se quando entendeu ser o tempo de terminar o seu trabalho, ou melhor, a sua responsabilidade pública, somos agora contemplados com a coragem de uma Instituição que mostra ao mundo o seu líder falecido.
É de coragem e de mensagem pedagógica que se trata, tratando-se de morte.
Como há algum tempo se discute no campo científico (nomeadamente nas ciências da saúde), a sociedade foi-se afastando da morte, enquanto fenómeno natural da vida e acontecimento social regular. Mesmo na literatura e no cinema, a morte apresenta-se frequentemente escondida, ou tratada com alguma subtileza, como é o caso dos livros de Agatha Christie ou dos filmes de Poirot. E na nossa vida real, estamos hoje muito afastados da morte. Como se fosse um acontecimento anormal, feio e cheio de sofrimento.
Também a propósito de outra figura pública mundialmente conhecida – Pelé – as notícias têm falado em sofrimento aquando da morte, como se fosse possível, num moderno hospital brasileiro, à luz do conhecimento científico atual, deixar Pelé sofrer numa cama hospitalar.
Mas a circunstância, cientificamente comprovada, de que, na morte, o sofrimento não é natural não é ainda do conhecimento geral. Morrer é igual a sofrer, na cultura vigente. Contudo, mesmo no tempo atual, existem muitos profissionais de saúde que sempre acompanharam muitas mortes, sem sofrimento, porque estavam lá. Hoje, os cuidados paliativos são disso uma evidência. Mas, claro, para que o sofrimento na morte seja o menor possível, é exigido um cuidado, científica e eticamente, adequados, no qual, para além da dimensão física, as dimensões psicológica e espiritual sejam tidas em conta. E isto exige um elevado conhecimento científico e ético, resultante da investigação científica, e a consequente adequada formação dos profissionais de saúde.
É o desafio que sempre se coloca à saúde: promover o bem-estar das pessoas e aliviar ou eliminar o sofrimento, em todas as suas dimensões. E neste desiderato, estamos bem, porque a ciência tem evoluído consideravelmente. De diferente modo, não tão rapidamente se tem acompanhado a formação em saúde. E, pior ainda, nem sempre o conhecimento científico é chamado a suportar, como devia, a decisão política. Mas esta é outra discussão.
Aqui, interessa-nos, relevar a excelente mensagem que as imagens do Papa Emérito Bento XVI, no seu leito de morte, nos pode transmitir. Uma mensagem de que a morte nos espera a todos, o que nos impele a uma adequada reflexão sobre como lidar com ela. Na certeza, porém, de que a morte do outro, sobretudo dos que nos são mais queridos, sempre se constitui como uma perda e por isso nos afeta tanto. Mas é na medida em que formos confrontados com imagens positivas de morte, como estas, que a nossa preparação para a enfrentar, se desenvolve.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico