Filipe Duarte morreu, e eles fizeram uma peça para homenagear aqueles que se foram

Vou Falar de Ti a Toda a Gente, em cena no Teatro Experimental de Cascais, junta três desconhecidos no funeral de um amigo, e cruza as suas diferentes visões da despedida.

cultura,cascais,luto,teatro,culturaipsilon,
Fotogaleria
Espectáculo parte de uma reflexão sobre a forma como se lida com a morte e se homenageia quem desaparece filipe ferreira
cultura,cascais,luto,teatro,culturaipsilon,
Fotogaleria
"Vou Falar de Ti a Toda a Gente", texto de Francisco Monteiro Lopes e Rodrigo Aleixo (que encena) filipe ferreira
cultura,cascais,luto,teatro,culturaipsilon,
Fotogaleria
Rodrigo Aleixo assume que o choque com o desaparecimento de Filipe Duarte desencadeou a criação da peça filipe ferreira

Do morto pouco sabemos. O centro da cena é ocupado por um caixão e lá dentro estará o corpo de um homem recém-falecido. A velá-lo, três amigos que não se conhecem, de perfis claramente distintos, num cenário que evoca mais um bar ou uma discoteca do que propriamente uma capela mortuária. Auxiliados por um barman/mestre de cerimónias, esperam por um quarto amigo para começar a tomar decisões acerca da melhor forma de homenagear o ente querido comum: cremação ou enterro (e, no primeiro caso, onde espalhar as cinzas?); dizer algumas palavras ou optar pelo silêncio; celebrar a sua vida em tom de festa ou lembrá-la através de histórias, com sobriedade.

Vou Falar de Ti a Toda a Gente, com texto de Francisco Monteiro Lopes e Rodrigo Aleixo e encenação deste último, estreia-se esta quarta-feira na sede do Teatro Experimental de Cascais (Teatro Mirita Casimiro, no Estoril). Em cena até domingo (de quarta a sábado às 21h; domingo às 16h), o espectáculo parte de uma reflexão sobre a forma como se lida com a morte e se homenageia quem desaparece. Mas foi um acontecimento concreto que o pôs em marcha.

Em Abril de 2020, período cuja rememoração activa de imediato em qualquer ser consciente a palavra “pandemia” (e com ela a rigidez muscular perante a lembrança do termo “confinamento geral”), a morte repentina do actor Filipe Duarte deixou Rodrigo Aleixo sem saber como poder prestar a sua homenagem ao amigo. As regras relativas à covid-19 ditavam que os funerais fossem presenciados apenas pela família próxima, e nas videochamadas de então entre Rodrigo e Francisco – “a forma que tínhamos para ocupar o tempo”, recordam ao PÚBLICO – os dois começaram a questionar-se sobre esse “como”. Como homenagear alguém que partira, como ensaiar a despedida de um amigo a quem não puderam dizer um derradeiro adeus, como respeitar aquela que imaginavam poder ser a maneira como gostaria de ser evocado por todos os que se juntariam em torno do seu desaparecimento?

A partir dessas perguntas, sem respostas taxativas, saltaram para as suas memórias passadas e para reflexões sobre a forma como a morte é encarada – consultando filmes e livros, ou realizando entrevistas, e visitando também um cemitério para se rodearem de mortos e das histórias avulsas que por ali ouviam.

Rodrigo Aleixo assume que o choque com o desaparecimento de Filipe Duarte desencadeou a criação de Vou Falar de Ti a Toda a Gente e não esconde que há frases ou momentos da peça inspirados por episódios partilhados com o actor, mas nada resulta explícito no texto e o encenador acredita que “cada pessoa há-de desenhar na sua cabeça uma figura que também queira homenagear”. Daí que, na verdade, deste morto ficcional que se esconde dentro do caixão pouco saibamos. Apanhamos migalhas dos discursos que os três amigos vão atirando, num conflito ou braço-de-ferro mais ou menos intenso baseado na visão que cada um tem sobre o falecido, como se tentassem a todo o custo – um pouco à semelhança do que vemos acontecer nas redes sociais – deter a história mais valiosa ou a verdade mais absoluta sobre aquele que se foi.

Em palco, Vou Falar de Ti a Toda a Gente trabalha em dois planos paralelos. Se somos colocados sempre diante das discussões e das tentativas de harmonizar as opiniões dos três amigos – Francisco Monteiro Lopes, João Gaspar e Miguel Amorim –, assistidos pelo funcionário (Pedro Russo), em relação a todas as decisões pendentes, assistimos também ao semelhante gesto de Monteiro Lopes e Rodrigo Aleixo na homenagem real que tentam fixar na peça.

O tom foi afinado ao longo dos dois meses que o colectivo conseguiu para trabalhar intensamente no texto, graças a uma bolsa atribuída por O Espaço do Tempo à companhia Teatro Gíria. E cruza-se com a constante intromissão de canções como Who am I?, de Nina Simone, ou Construção, de Chico Buarque, a música de Morricone ou o ambiente de rave que, às tantas, toma conta do espectáculo. Uma opção que faz parte dos contrastes que o encenador gosta de trabalhar. E que, afinal, reforça a ideia da falta de certezas e da impotência perante o acontecimento central. Perante essa impotência, resta voltar a uma outra formulação da questão inicial: chorar ou dançar?

Sugerir correcção
Comentar