A esquerda e a guerra na Ucrânia

Não posso condenar a invasão do Iraque e não condenar a invasão da Ucrânia. Na minha posição, lembro-me de Gramsci: o socialismo também é um projeto moral.

A esquerda parece perdida em termos de uma posição coerente sobre a guerra na Ucrânia. A esquerda social-democrata europeia alinha claramente com a NATO e a esquerda radical mostra alguma ambiguidade. A meu ver, o que tem faltado é a análise da guerra em termos sistémicos e do seu significado no processo histórico e quanto aos interesses das massas populares. Não é a primeira vez que tal acontece. Entre outras causas, foi determinante para a cisão da II Internacional a posição em relação à Grande Guerra de 1914, em que a corrente que depois deu o movimento comunista considerava que a guerra não interessava aos trabalhadores nem os devia envolver, sendo um conflito entre potências imperialistas dentro do quadro das contradições do sistema capitalista.

Está a passar-se o mesmo. Todo o mundo político reage em termos geopolíticos, polarizados, com simpatias a prevalecer sobre a análise. É claro que a análise demonstrará que essas simpatias têm por fundo posicionamentos muito diferentes em relação ao conflito principal que deve mover a esquerda.

Não sou um analista frio e também tenho simpatia, mas não por nenhum dos contendores, sacos da mesma farinha. A minha simpatia é com o povo ucraniano e com os soldados de um e outro lado que estão a ser carne para canhão.

Na Guerra Fria havia alguma tendência para o relativismo na apreciação das atuações políticas concretas, conforme o nosso lado. Mas os lados eram essencialmente antagónicos, de sistema social e económico. Hoje não. Tal como em 1914, os antagonistas exprimem interesses imperialistas dentro do mesmo sistema. É certo que há diferenças de grau nos imperialismos e que, da parte russa, há fundamentos menos ligados ao domínio económico e mais ao nacionalismo grão-russo, à cultura e até ao papel da Igreja ortodoxa. Há também um peso maior da questão do Estado e o domínio não parece projetar-se à distância e com horizontes planetários, como no caso dos EUA. Mas, em rigor, não deixa de ser imperialismo, sensu lato, mesmo que seja um “imperialismo secundário”.

Não sou defensor da perspetiva absoluta de real politik e não aceito que os fins justificam os meios. Custou caro à humanidade alcançar um sistema mínimo de ordenamento internacional, depois da II Guerra, que, por muitos defeitos que tenha, dá por adquiridos princípios de convivência entre Estados e povos. Referi-me ao relativismo na Guerra Fria, entendendo-o, mas não o aceitando hoje, à luz do direito internacional. Não posso condenar a invasão do Iraque e não condenar a invasão da Ucrânia. Na minha posição, lembro-me de Gramsci: o socialismo também é um projeto moral.

Isto não quer dizer que, no plano da análise racional, não perceba todos os fatores que precipitaram a ação russa e que da sua compreensão não se retirem ensinamentos para a construção urgente de uma nova ordem mundial, contra a unipolaridade do domínio agressivo americano/NATO, cujas provocações também são absolutamente condenáveis. Por analogia jurídica, a provocação pode constituir uma atenuante para a invasão mas não anula a culpa.

Quem percorre as redes sociais vê que há uma tendência flagrante em parte da gente de esquerda radical para uma atitude russófila. Nalguns casos, pode haver um certo saudosismo, um sentido de orfandade, que ainda veja na Rússia atual o esteio que era a URSS. Em geral, creio que a principal motivação é outra, apenas o contraponto com a oposição ao imperialismo americano, o expoente do capitalismo. Partilhando essa oposição, não alinho com a reação simplista e com muito maniqueismo de simpatia apologética para com o atual regime russo. O inimigo do meu inimigo não é forçosamente meu amigo.

A ação da esquerda consequentemente anticapitalista é o combate pelo socialismo, não é a participação, ativa ou afetiva, num ou no outro dos campos que manifestam contradições do sistema mas que se movem ambos nesse mesmo sistema único. É certo que aprofundar as brechas do sistema e usar as suas crises também a nível geopolítico, como esta atual, tem utilidade tática, mas não pode obscurecer o essencial. Essencial, neste momento, para os povos de todo o mundo e para a construção de um novo sistema de ordenamento internacional, é a paz e o levantamento de um forte movimento de pressão para um cessar-fogo imediato. As condições virão na fase de negociação.

Provavelmente, o momento atual, em que parece haver um certo impasse no campo militar, será uma oportunidade para a desescalada da guerra, no caminho da paz, e a abrir perspetivas de uma nova ordem mundial, com respeito pela soberania integral e segurança de todos os povos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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