“Somos o novo mundo do velho mundo.” Uma aula sobre o Douro dos últimos 100 anos

António Magalhães e David Guimaraens trabalham juntos há 30 anos. Inovaram em vários aspectos sem virar costas ao passado. Uma dessas inovações redefiniu o mosaico arquitetónico das vinhas durienses.

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António Magalhães e David Guimaraens trabalham juntos desde 1992. Há 20 anos encontraram a inclinação e a solução perfeitas para os patamares do Douro

Falar com António Magalhães e David Guimaraens sobre o Douro dos últimos 30 anos, tantos quantos os que levam de trabalho lado a lado na região demarcada mais antiga do mundo, é perceber o que hoje se passa naquele cantinho mágico de Portugal e perspectivar o futuro com outras lentes. Falam repetidamente nos ensinamentos que o Douro lhes deu, mas são eles quem hoje dá “a grande lição” sobre a região.

Os directores de viticultura e de enologia, respectivamente, do grupo The Fladgate Partnership, começaram a trabalhar juntos em 1992, ano em que um pedido de Bruce Guimaraens viria a mudar-lhes o curso – o deles, o da empresa e, em certa medida, o de uma parte do Douro. Desde então têm sido a candeia que vai à frente num território que se reergueu com mestria depois da filoxera e que os anos 1980 voltou a virar “de pernas para o ar”.

“Em 1992, o meu pai lançou-nos um grande desafio, que foi converter duas áreas de vinha do Panascal em vinha biológica. E aquilo que nós aprendemos com a conversão dessas vinhas reorientou-nos na concepção das vinhas, na sua construção. Foi um momento mágico”, conta David, que usa muitas vezes esta última expressão para falar dos últimos trinta anos.

O enólogo estava há dois anos na empresa que detém a Taylor’s, a Croft e a Fonseca, trouxera da Austrália exigência e ideias revolucionárias, António chegou em Maio de 1992 à casa onde desde miúdo sonhava trabalhar. A vindima desse ano gerou “a primeira cumplicidade" e deu-lhes “uma lição para 30 anos”, conta o engenheiro agrónomo que tinha estagiado na Cockburn’s e passado os últimos nove anos na então avançada Barros.

“Em 1992, a Primavera foi muito seca e faltou água suficiente para antecipar o amadurecimento das uvas. Chegámos ao início de Setembro as uvas não atavam nem desatavam. Os dias passavam e nós estávamos a tornar–nos muito impacientes, mas havia outra geração na empresa, a de Alistair Robertson e Bruce Guimaraens, e a sabedoria da experiência. E a primeira grande lição que eu recebi do senhor Bruce foi que as gotas do orvalho entram na conta da chuva.” Com a ajuda do rocio, mas também de uma abençoada chuva na recta final do Verão, as uvas lá se puseram finas. “Tivemos poucos dias para vindimar, já no fim de Setembro e na primeira semana de Outubro. Acabámos por fazer um vintage clássico, excepcional, e aprendemos a vindimar tarde”, conta António Magalhães.

Quer David, quer o pai haviam visto lá fora o que prometia o biológico, o primeiro nos cinco anos de Austrália, o segundo nas viagens que fazia mundo fora a vender o vinho do Porto. E a primeira lição que o enólogo retirou da reconversão no Panascal foi que o Douro é “uma região de clima árido, onde os problemas de doenças são muito baixos comparando com todas as partes da Europa” e que as práticas agrícolas dos anos 1980, nomeadamente a utilização excessiva e cega de produtos químicos, eram infundadas.

A dupla aprendeu também “a viver com as ervas” e percebeu que na vinha ao alto essa gestão era muito mais fácil. O que não quer dizer que os outros modelos de vinha estivessem condenados. Pela orografia da região, e por faltar pedra solta e mão-de-obra para construir os icónicos muros (e para a viticultura em geral), os patamares são necessários. Mas os das décadas de 1970 e 1980, os do PDRITM (Projecto de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes; do Banco Mundial chegou dinheiro para plantar 2500 hectares de vinha segundo esse novo modelo de vinha), eram “inviáveis numa viticultura biológica ou sustentável”, explica David Guimaraens.

“Precisávamos de revolucionar o método de construção do patamar, com dois propósitos: defender a encosta da erosão das chuvas [a água encontra sempre o caminho mais fácil para descer a montanha] e fazer uma redução drástica de herbicidas”, atalha António Magalhães, enquanto admiramos essa inovação com 20 anos chamada laser a ser posta em prática numa reconversão de vinha na Quinta da Roêda.

A fugir do dilúvio, fez-se luz

David e António estudaram, estudaram, estudaram, até que um feliz acaso, a muitos quilómetros de casa, lhes deu a primeira parte da reposta. “Em 2001, fizemos uma viagem à Califórnia, éramos convidados na Benziger Family, que eram produtores biológicos. Estávamos na vinha, caiu uma tempestade inesperada e tivemos que correr. A correr com a água atrás de nós e percebemos que havia escoamento e descobrimos que aqueles patamares tinham todos 3 por cento de inclinação.

Construção dos primeiros patamares guiados a laser na Quinta de Santo António, em 2002, e o buldózer que veio dos arrozais do rio Mira Direitos Reservados
A utilização do laser na construção dos primeiros patamares estreitos na Quinta de Santo António, da Fonseca, há 20 anos Direitos Reservados
O laser, aparelho que revolucionou a construção da paisagem vinhateira do Douro nos últimos 20 anos e começou a ser utilizado na viticultura duriense na Quinta de Santo António, da Fonseca,O laser, aparelho que revolucionou a construção da paisagem vinhateira do Douro nos últimos 20 anos e começou a ser utilizado na viticultura duriense na Quinta de Santo António, da Fonseca Direitos Reservados,Direitos Reservados
Os primeiros patamares construídos com o recurso a laser num declive de 50 por cento, na Quinta de Santo António, no Douro,Os primeiros patamares construídos com o recurso a laser num declive de 50 por cento, na Quinta de Santo António, no Douro Direitos Reservados
Os primeiros patamares construídos com o recurso a laser num declive de 50 por cento, na Quinta de Santo António, no Douro,Os primeiros patamares construídos com o recurso a laser num declive de 50 por cento, na Quinta de Santo António, no Douro Direitos Reservados,Direitos Reservados
Pormenor da passagem deixada para a maquinaria em patamar guiado a laser na Quinta de Santo António, no Douro Direitos Reservados
Na Quinta de Santo António, onde nascem os vinhos do Porto da Fonseca, patamares guiados a laser com olival de bordadura e ciprestes Direitos Reservados
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Construção dos primeiros patamares guiados a laser na Quinta de Santo António, em 2002, e o buldózer que veio dos arrozais do rio Mira Direitos Reservados

Mas o nascimento do moderno patamar estreito, como explica António, conta-se numa sucessão de deliciosas histórias. A seguinte: como chegar, na prática, àquela “inclinação longitudinal perfeita”? Vários ensaios e várias consultas a empresas de terraplanagem depois, Feliciano Branco, com quem ainda trabalham e cujo filho Nuno conhecemos na Roêda, ficou “entusiasmado” com o problema e que foi encontrar um buldózer mais pequeno em segunda mão em Vila Nova de Milfontes.

Segundo “acaso extraordinário”: “telefonou-me a dizer que a máquina tinha um aparelho esquisito por causa da inclinação. Era um sistema de laser acoplado para trabalhar no arroz no Mira, porque os tabuleiros de arroz têm uma inclinação longitudinal que permite, no fundo, que a água se renove sem arrastar o arroz.”

O primeiro patamar estreito foi construído na Quinta de Santo António, em 2002. “Era aquilo, era a solução do laser. Percebemos logo, caiu do céu.” Caiu do céu e mudou a terra no Douro, numa paisagem que, apesar da inovação, continua a ser um mosaico de diferentes soluções arquitectónicas que só um olhar atento consegue distinguir.

Os socalcos pré-filoxera, “mais estreitos, com muros mais baixos e mais toscos e menos videiras por hectare”, são anteriores à praga que devastou vinhas em toda a Europa no século XIX e foi detectada no Douro a primeira vez em 1863. Os socalcos pós-filoxera têm muros em xisto de maior dimensão para criar maiores plataformas, e neles os viticultores de há 100 anos plantaram as castas que perceberam ser mais resistentes, já com porta-enxerto indemne ao insecto.

Vinha em socalco pré-filoxera (os três primeiros socalcos) e, ao fundo, patamar estreito de 1,5 metros de largura, na Quinta do Panascal Direitos Reservados
Na Quinta do Panascal, da Fonsca, a vinha velha do rio, em socalcos pós-filoxera, e olival Direitos Reservados
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Vinha em socalco pré-filoxera (os três primeiros socalcos) e, ao fundo, patamar estreito de 1,5 metros de largura, na Quinta do Panascal Direitos Reservados

O socalco “genial” e a crise climática

“De uma maneira genial, o Douro do início do século XX elegeu um porta-enxerto com origem no Texas, habituado a zonas áridas, o Vitis rupestris”, conta António Magalhães. Um bacelo que viria a ser posto de parte pelo PDRITM, cujas palavras de ordem eram mecanização e produção. “Não induz à produção, mas vai protegendo as videiras deste clima adverso e dá longevidade às videiras”, explica o director de viticultura da Fladgate.

António Magalhães não defende um regresso incondicional ao Vitis rupestris, mas partilha que a empresa está, “há cinco anos, a estudá-lo intensamente” e a descobrir o seu “bom senso, desde que esteja ligado a uma grande densidade de plantação”.

“Se observarmos as vinhas pós-filoxera, temos ali o nosso campo de ensaio. Estamos a perder muito tempo a renegar todo esse conhecimento [das vinhas velhas]”, repete, por diversas vezes, António Magalhães, para quem “não há região do mundo tão bem preparada para enfrentar as alterações climáticas como o Douro”, esse “laboratório vivo” irrepetível.

“A concha vinhateira do Douro é impossível de repetir em qualquer parte do mundo, porque resulta desta combinação da localização da vinha, da altitude e da exposição. E porque no vinho do Porto nós lotamos tudo: lotamos a localização, a altitude, a exposição, as castas, o ano. É por isso que nós nos desembaraçamos”, refere o agrónomo com veia de historiador que se diz “feliz” por poder fazer vinhos no Douro sem “contrariar a natureza”.

O pós-filoxera, com “a reconstrução das vinhas do Douro, a partir da última década do século XIX e nas três primeiras décadas do século XX”, foi “uma época de ouro para a região”, recentra David a conversa. E nesse socalco, para António “um modelo magnífico, genial sobre todos os aspectos”, parece estar todo o Douro.

É dessa altura o conjunto principal de castas durienses que chegam aos dias de hoje. “As vinhas velhas do Douro têm uma mistura grande de castas, mas não são, como às vezes ouço, dezenas e dezenas de castas. Temos muitas castas, sim, mas há muitas que são residuais. As principais são sempre as mesmas”. E isso acontece porque, explica António (que um dia há-de escrever sobre “a revolução silenciosa na viticultura dos anos do pós-filoxera”), os lavradores de há cem anos aprenderam com a praga.

“No fim do século XIX, com as suas videiras todas a morrer, e estávamos com field blend, os viticultores do Douro reparam que algumas videiras estavam vivas, todas de Mourisco. Tornou-se evidente que a casta era naturalmente resistente à filoxera”, explica sobre a variedade funcionalmente feminina que é a “mãe de tantas castas”. E continua: “havia uma videira resistente à filoxera e outra que se destacava pela qualidade do vinho, a Touriga [mais tarde Touriga Nacional] e as pessoas, inteligentes, cruzaram as duas”.

A nossa viticultura “está cheia de filhos de Mourisco”, que, em 2007, a legislação obrigou a chamar Marufo (nos contra-rótulos, pelo menos), e de Touriga: “Touriga Francesa [nunca Franca para os durienses], Tinta da Barca, Tinta Barroca, Tinta Melra, Tinta Aguiar…”

Até a poda em vara e talão era avisada há 100 anos. O Guyot de que hoje tanto se fala “pertence às vinhas pós-filoxera, quando as pessoas adoptaram esse sistema por razões climáticas”. O cordão, explica o especialista, “ganha sempre na folha de Excel” mas tem mais madeira velha exposta ao sol impiedoso do Douro e pressupõe anos vitícolas sempre iguais. “Ou seja, estamos a repetir tudo. Mas não estamos a voltar atrás, estamos a conciliar as duas coisas.”

Malditos anos 1980

Entre as soluções que compõem hoje a paisagem-retalho, há ainda a vinha ao alto, plantada ao longo da encosta em fiadas perpendiculares às curvas de nível, quando a orografia permite, e introduzida na década de 1980, em paralelo com os tais patamares do PDRITM, em que, para mecanizar, foi preciso alargar o espaço entre as videiras, reduzindo-se o número de plantas por hectare.

Os patamares estreitos, desenhados a laser, são há 20 anos opção sempre que a inclinação é acima dos 35 por cento. Pouco depois, António e David começaram a trabalhar também no que chamam de socalcos pós-filoxera de segunda geração: os mesmos socalcos de há 100 anos onde, por ocasião de uma reparação dos muros, se aproveita para reestruturar as vinhas e deixar junto à base dos muros passagem com dois metros de largura para o tractor.

Nova geração dos socalcos pos-filoxera, na Quinta do Cruzeiro, da Fonseca Direitos Reservados
Nos socalcos pós-filoxera de segunda geração, a Fladgate abre uma estrada de trabalho ao longo do muro que permite mecanização e alivia a penosidade dos trabalhos na vinha Direitos Reservados
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Nova geração dos socalcos pos-filoxera, na Quinta do Cruzeiro, da Fonseca Direitos Reservados

No piloto da Quinta de Santo António, convivem todas estas soluções, excepto as vinhas do PDRITM, cujos taludes, para além de serem propensos a feridas de erosão – decorrentes da tal inteligência da água –, são superfícies vivas enormes e dependentes dos herbicidas (para patamares mais estreitos, os taludes são mais baixos e as ervas podem ser controladas com um roçador).

Dos anos 1980, e com o PDRITM, vem também o “erro” das “grandes manchas” de um punhado de castas então com interesse enológico. Não se colocavam as variedades de acordo com as suas características e a orografia da encosta. “Hoje chegamos a ter vinhas com três hectares e nove castas. É um mosaico de castas, para as ligar ao sítio perfeito. E porque no vinho do Porto precisamos de todas as castas”, refere António. Não é o field blend. São micro talhões dentro de uma mesma vinha.

Que co-fermentam juntas. Uma prática que surgiu ainda antes de a dupla engarrafar o “professor” Vargellas Vinha Velha Vintage 1995. Numa altura em que “as vinhas velhas no Douro estavam na lista de espera para ser deitadas abaixo e transformadas em patamares”, David e António perceberam em Vargellas, corria o ano de 1994, durante a sua volta pelas vinhas em vésperas de arrancar a vindima (todos os anos o fazem religiosamente nas 13 quintas da Fladgate e nas vinhas de mais de 70 lavradores parceiros) que aquelas uvas eram muito boas e que as castas se complementavam quando lotadas ainda na vinha. O primeiro explica que começaram então “a juntar o puzzle do porquê da co-fermentação: começámos a perceber que as castas secundárias de menor percentagem são muito importantes também para a complexidade, para a identidade”.

David Guimaraens e António Magalhães, respectivamente director de enologia e director de viticultura da Fladgate, numa fotografia de 2014 Direitos Reservados
Relatório de vindima de 1945, que Alistair Robertson (da anterior geração na Fladgate) mostrou a David Guimaraens e António Magalhães quando os ouviu falar na exigência que foi 2017. "Ah, mas foi assim em 1945", disse-lhes Direitos Reservados
António Magalhães, o agrónomo-historiador da Taylor's, abre este Manual de Viticultura de 1875, para mostrar como o Visconde de Villa-Maior já aconselhava no século XIX dispor "o terreno em terrados sustentados por taludes de terra batida" e em "dar às águas adventícias das chuvas torrenciais direcção conveniente" José Sérgio
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David Guimaraens e António Magalhães, respectivamente director de enologia e director de viticultura da Fladgate, numa fotografia de 2014 Direitos Reservados

A década de 1990 foi, para ambos, a outra era dourada do Douro, neste caso mais no sentido de a crise obrigar à inovação, nomeadamente na adega. Tinham fechado várias adegas e já rareava a mão-de-obra, o que levou David a desenvolver as cubas de pistões que estão hoje na Adega da Nogueira, onde a empresa faz os LBV e os Reserva Ruby (para as categorias especiais, a Fladgate mantém-se fiel ao lagar de granito com pisa a pé, por vindimadores que nunca deixou de contratar directamente).

A partir do ano 2000, e à medida que tentava “decifrar esse virar de pernas para o ar” que encontraram “na viticultura e na enologia”, a dupla começou a escrever cartas aos lavradores, numa média de seis a nove missivas por ano, a explicar o que está a acontecer a cada momento e o porquê de estar a acontecer. O objectivo é capacitar esses parceiros de negócio. A mesma coisa com os chefes de cultura (antigos caseiros) e demais pessoal das quintas da Fladgate.

De Sonoma ao Douro, do Mira à Sicília

Os patamares que vimos em construção na Roêda, mas também na Quinta de Terra Feita, já só têm 1,5 metros de largura – são segunda geração do laser –, ao passo que os primeiros patamares estreitos tinham 2,3 metros, à medida das máquinas de então. “Reduzimos a largura de maneira a reduzir a altura do talude e a conseguir mais videiras por unidade de superfície”, explica António Magalhães sobre o metro e meio que permite regressar à elevada densidade de plantação do primeiro socalco pós-filoxera. E, igualmente importante numa viticultura de montanha, aspirar a “uma arquitectura de terreno que sobreviva às videiras que acolhe”.

Nuno Branco, filho de Feliciano Branco, da empresa Terraplanagens S. Domingos, na construção de patamares estreitos numa reconversão de vinha na Quinta da Roêda José Sérgio
Reconversão de vinha e construção de patamares estreitos, de 1,50 metros, na Quinta da Roêda, no Pinhão José Sérgio
Reconversão de vinha e construção de patamares estreitos, de 1,50 metros, na Quinta da Roêda, no Pinhão José Sérgio
Hoje há máquinas para trabalhar em patamares guiados a laser com 1,50 metros de largura; na primeira geração do laser, há 20 anos, as plataformas tinham 2,30 metros Direitos Reservados
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Nuno Branco, filho de Feliciano Branco, da empresa Terraplanagens S. Domingos, na construção de patamares estreitos numa reconversão de vinha na Quinta da Roêda José Sérgio

“Somos o novo mundo do velho mundo”, sintetiza David, sobre a “magia” de fazerem parte há 30 anos “da transformação de um sector completamente tradicional num sector moderno”. “Temos recuperado muito do conhecimento empírico a que se viraram as costas nas décadas de 1970 e 1980. E o legado que nós vamos deixar é nos vintages que produzimos, mas também nas vinhas que nós temos vindo a plantar, que esperamos que sejam de referência daqui a uma ou duas gerações.”

Vários anos depois da iluminada visita ao produtor de Sonoma, numa outra viagem à Califórnia, David encontrou um dos Benziger e ao contar-lhe a história do “feliz acaso” em dia de dilúvio, ouviu de resposta: “Já comprámos assim aquela vinha, não sabemos muito bem quem a construiu, apenas que era uma empresa chinesa”. E em jeito de epílogo, António, que acredita em acasos mas não em coincidências, conta-nos como em 2022 – sim, este ano – o laser chegou… ao arroz da Sicília.

O agrónomo-historiador mostra-nos um artigo de Setembro da revista francesa Le Point: o declive, técnica com um século de existência, é agora o futuro da cultura do arroz que em tempos a ilha italiana abandonou em prol de outras culturas mais produtivas e com menor consumo de água.

Por cá, a ideia demorou menos a pegar. Em viticultura, diz-nos, “são precisos 15 a 20 anos para demonstrar uma boa ideia”. E a do laser era tão boa que a Feliciano Branco nunca faltou trabalho, conta Nuno, o filho do empresário de Alijó.

Nos patamares estreitos, guiados a laser, os taludes são mais baixos, o que permitiu à Fladgate "eliminar a 100 por cento a utilização de herbicidas residuais"; na empresa só se aplicam herbicidas de contacto, na linha da videira Direitos Reservados
Apesar de toda a inovação, a Fladgate continua a ter machos para trabalhar algumas vinhas, num casamento constante entre o melhor do velho e do novo Douro Direitos Reservados
Com a viticultura sustentável praticada na Fladgate, o verde das folhas das videiras na estação quente é substituído no Inverno pelo verde dos enrelvamentos naturais Direitos Reservados
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Nos patamares estreitos, guiados a laser, os taludes são mais baixos, o que permitiu à Fladgate "eliminar a 100 por cento a utilização de herbicidas residuais"; na empresa só se aplicam herbicidas de contacto, na linha da videira Direitos Reservados

A Fladgate venceu o Prémio BES Biodiversidade, em 2009 (ex-aequo com o Parque Natureza de Noudar, em Barrancos), o que ajudou a dar visibilidade à técnica. E o Inverno muito chuvoso do ano seguinte evidenciaria ainda mais as vantagens da construção guiada por laser. “Quando se replanta uma vinha no Douro, estamos a reconstruir a paisagem. E a responsabilidade é muito maior aqui do que noutras regiões vinhateiras, porque esta paisagem extraordinária foi sempre construída com muito esforço”, nota David Guimaraens.

Na Sicília, para irrigar com recurso à gravidade e poupar água (até 45 por cento) inclinaram-se os campos 0,02 por cento. No Douro, a perfeição está nos “3 por cento de inclinação a cada 100 metros”. Afinal, a região não é só natureza e esforço humano, também é ciência. E acaso. O que é estranho. E maravilhoso.

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