Uma pessoa serve para cuidar do mundo

“Se uma pá serve para cavar, se uma faca serve para cortar, para que serve uma pessoa?”

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Max Goncharov/Unsplash

O meu filho foi sempre um menino inteligente e espirituoso, capaz de tiradas inocentes e sábias. Julgo que é algo que calha em sorte a todas as crianças, essa liberdade e unicidade de pensamento, antes de serem corrompidos pelas vulgaridades dos adultos.

Quando eu frequentava o mestrado em Filosofia, o meu filho tinha cinco anos. Certa manhã, íamos no carro a caminho da sua escola, como fazíamos de Segunda a Sexta, e eu fiz-lhe uma pergunta que tinha sido colocada no dia anterior numa das minhas aulas na faculdade e à qual nenhum aluno ou aluna tinha dado resposta. Perguntei ao meu filho aquilo que nos tinha sido questionado e exactamente da mesma forma: "Se uma pá serve para cavar, se uma faca serve para cortar, para que serve uma pessoa?" Sem hesitar, o meu filho, que se encontrava sentado na cadeirinha no banco de trás do carro, respondeu: "Uma pessoa serve para cuidar do mundo, mãe."

Fiquei estupefacta. Que resposta linda. Nunca me ocorreria tal coisa. Olhei pelo retrovisor e dei-lhe os parabéns por aquela resposta, de facto surpreendente. Nenhum dos adultos foi capaz de dar resposta durante a aula. Nem sequer houve uma tentativa. Não nos ocorreu nada. Uma sala cheia de adultos licenciados, alguns pais e mães, e ninguém teve uma resposta digna de ser verbalizada. E agora ali, o meu filho, sentado na cadeirinha do carro, tinha dado uma resposta simples e profunda, complexa e descomplicada. "Uma pessoa serve para cuidar do mundo."

O meu rapaz, depois de me dar uma resposta daquelas, riu-se e começou a cantarolar uma música que estava a dar na rádio, totalmente alheio à minha reacção, já nem sequer pensava nisso. Fiquei presa na satisfação que me proporcionava a sua resposta, agarrada àquele pensamento, até ser interrompida pelos gritos dele: "Quero gelatina de morango!" Pelo amor de Deus, gelatina de morango às oito e meia da manhã. O meu filho era uma companhia animada e estimulante no carro, mas também calhava ser birrento; tanto adorava cantar como fazer birras e dar berros a propósito de nada. Se umas vezes tinha graça quando cantava num inglês inventado, outras quase me levava à loucura com as suas birras.

Quando, por exemplo, ficávamos parados no trânsito à hora de ponta, um tráfego por si só enlouquecido que não precisava de extras ensandecedores dentro do cubículo, pontapeava o banco à sua frente e dizia que precisava de alguma coisa que eu não lhe pudesse dar naquele momento. "Quero uma fartura!" Acontecia muitas vezes este pedido quando estávamos parados algures na Avenida 24 de Julho e a única fartura que tínhamos eram os carros enfileirados nos dois sentidos da estrada. Não entendia que não podia ser. Chorava e gritava até se cansar e adormecer na cadeirinha a caminho de casa. Há um pensamento que me ocorre desde que fui mãe, na realidade, uma preocupação que penso ser comum a várias mães. Quero muito que o meu filho seja uma boa pessoa, que seja um homem bom quando crescer. Penso que, apesar das birras, está no bom caminho. O facto de saber aos cinco anos que uma pessoa serve para cuidar do mundo dá-me ânimo para o futuro.

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