As duas castas

Existe a convenção social segundo a qual a gestão “vale” muito mais do que o trabalho, justificando remunerações vinte, trinta, cinquenta vezes maiores para quem gere do que para quem “opera”.

O mundo das actividades profissionais está dividido em duas regiões separadas por um fundo desfiladeiro: a do trabalho através do qual funcionam as empresas e a economia; e a da gestão, que comanda esse funcionamento e, ao mesmo tempo, rege a fórmula pela qual são distribuídos os proveitos.

Vigora uma convenção social segundo a qual esta última actividade “vale” muito mais do que a primeira, justificando compensações remuneratórias vinte, trinta, cinquenta vezes maiores para quem gere do que para quem “opera”. Essa convenção tem explicação fácil nas empresas privadas, onde os gestores têm com os accionistas o compromisso de tudo fazerem para lhes canalizarem benefícios, e são estimulados/premiados por reduzirem ou eliminarem outros gastos (como o dos salários do pessoal…). Este “contrato” pode levar a que se endivide a empresa no médio e longo prazo para aumentar os dividendos – e se ganhe, no fim, um bom prémio de gestão.

Estender a fórmula ao sector público é menos razoável, porque a primeira prioridade das empresas é assegurar um serviço óptimo e a de gerar lucros vem só depois. No entanto, essa extensão é feita com base no argumento de que, se assim não for, as empresas públicas não podem contar com os “melhores” – os quais, de resto, parecem concentrar-se nas fileiras dos partidos dominantes.

De um modo ou de outro, a “população activa” do país divide-se, assim, em duas castas , no que toca à compensação económica do esforço das pessoas: a dos que ganham “o menos possível”, na lógica da compressão de custos (combate à inflação, recuperação das empresas, salvaguarda dos postos de trabalho, competitividade das empresas e da economia…); e a daqueles para quem não há limites, dependendo apenas do que exijam e do que os accionistas (privados ou públicos) estejam dispostos a pagar-lhes.

Os primeiros estão expostos às flutuações dos mercados e das estratégias adoptadas pelos segundos, ao alcance de despedimentos colectivos com indemnizações irrisórias e outras medidas de austeridade; os segundos vivem blindados por cláusulas contratuais do tipo “pára-quedas dourado”, que lhes garantem compensações milionárias à saída, e são imunes às políticas de contenção de custos. De empresa em empresa – porque a casta funciona em cadeia , estes últimos vão construindo carreira e fazendo fortuna. Basta alcançar a primeira administração – a partir daí, e independentemente dos resultados obtidos, a estrada para a prosperidade está aberta.

O problema está evidenciado nos Estados Unidos, graças às normas de transparência que aí vigoram mas, entre nós, tudo se passa como se não existisse. Ou melhor: sabe-se que existe, mas não se tem ideia nítida dos valores (protegidos por elaborada neblina) e, de qualquer modo, o que é importante é “chegar lá”. A atractividade dos cursos de gestão de empresas e dos MBA encontra neste cenário uma chave explicativa.

No sector privado, o apelo ao equilíbrio e à equidade é inútil, porque o sistema assenta na natureza dos compromissos subjacentes aos cargos de gestão. A única via de atenuação será, porventura, a da penalização fiscal – através de taxas muito superiores às actuais para esses rendimentos anormalmente elevados , embora sob o risco de efeitos contraproducentes.

No sector público, a questão parece bastante mais abordável. É possível estabelecer regras que articulem, de algum modo, as remunerações dos gestores com dois complexos de valor que fazem parte do mesmo contexto: de um lado, o mapa dos salários praticados na empresa, e, do outro, os níveis remuneratórios dos governantes que têm a responsabilidade política de a tutelarem. Se isso resultar na renúncia aos “Ronaldos” da gestão, paciência. Não existe absolutamente nenhuma prova de que a qualidade da gestão das empresas públicas (e, já agora, também das privadas…) tenha alguma relação positiva com a remuneração dos administradores.

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