O Coração Ainda Bate. Os amigos

Inês Meneses escreve sobre a importância de ter amigos.

Um dia antes do Natal, recebi a visita de uma amiga. Falámos baixinho dos nossos segredos e rimo-nos alto, até do que nos amedronta. Temos de nos rir do que cresce sem controlo em nós: o medo, a frustração, a raiva. Rir dissolve tudo e faz-nos novos vezes sem conta. A amizade é esse renascimento onde caímos, mesmo quando nem sabíamos de que era disso que precisávamos tanto.

Com a minha amiga, fui pela rua com o frio e a noite a lamber-nos a cara. E a conversa que nunca se esgota. É mesmo isso que acontece entre os verdadeiros amigos: a conversa não morre. Tudo é passível de ser assunto e a gargalhada nunca é inconveniente. A pergunta, quando vem em forma de desconhecimento, nunca é confrangedora. Entre amigos mesmo verdadeiros não há receios, há vontade de continuar. Talvez isso também distinga a amizade do amor: não temos de medir o que se segue. O que se segue é sempre válido, sem julgamentos.

Os amigos provocam-me, sem querer, esta coisa boa de os querer integrar para sempre na minha vida: pode ser só aquele momento em que a ideia, absurda, nos passou pela cabeça, mas é válida quando surge: a ideia e o sentimento. Tê-los para sempre nos momentos bons. Como se fosse possível.

Com os amigos, sem os nomear por vezes, queremos passar o Verão, as férias, num destino aonde será improvável irmos, continuar o jantar de uma noite pela semana toda, ver os concertos que estavam anotados na agenda: vamos todos! Depois, um a um, quase todos dirão que não podem, que já tinham outras coisas combinadas. Muitas vezes me doeu a falta dos amigos em momentos que considerei importantes. Hoje, absolvo-os de imediato, para saber que no dia a seguir, feito de outros momentos, eles, os verdadeiros, também lá estarão. Os verdadeiros amigos não falham, até quando faltam. Vêm dias depois, abraçam-nos numa hora que não estava na agenda.

Mandam uma mensagem adivinhando que estamos tristes. Tenho muita sorte: os meus amigos ainda não cabem apenas na palma da mão: são mais. São muitos. Não os quero incondicionais, mas verdadeiros. Pode ser que um me falte num momento importante, mas outro virá ao meu chamamento. Os amigos não têm de estar sempre, têm de vir numa noite e fazer dela especial. Exultamos a presença deles, e eles a nossa. Brindamos à vida. Lembramo-nos de tudo o que já vivemos. Eles dizem coisas que nós já não nos lembramos que um dia dissemos. Envergonham-nos, talvez, e depois rimo-nos todos enquanto pegamos no copo que tínhamos prometido não beber.

Ter amigos é vivermos acompanhados da certeza de que nunca mais estaremos sozinhos. Talvez possa acontecer ao domingo, quando cada um vive debruçado sobre a sua náusea particular da existência. Os domingos são por si só existencialistas. Por vezes, sentimo-nos o único coração triste da cidade, mas no dia a seguir virão eles a pouco-e-pouco dizer que o coração ainda bate.

Ter amigos é ser adolescente para sempre. Mudar de lugar na mesa para conversarmos com todos. Querer contar a piada com mais graça só para os fazer felizes. Rir três vezes da mesma coisa. Acabar a noite (ou o dia) a trocar mensagens dizendo que gostamos muito uns dos outros. Enviar canções que se ouviram no restaurante onde havia mesa para todos. Fixar o nome do vinho para brindes futuros.

Ter amigos enche-nos de uma esperança especial: a que nunca se esgota, a que traz nas mãos flores, a que enche os sofás com os casacos deles. Olhamos em silêncio e pensamos: que sorte serem tantos os casacos – os amigos.

Os amigos ficam. Levam-nos ao táxi. Saem quando não podem continuar, mas avisam que não temos de os levar à porta. Um casaco a menos, mas o sofá guardará aquele molde.

Os amigos são a árvore iluminada, até quando não é Natal. São as garrafas vazias que levamos com um sorriso ao vidrão.

Os amigos são um passeio sem-fim de mão dada com a vida.

Preciso de todos eles para continuar o meu caminho.


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