Coração dividido

Sei que não chateio ninguém da minha família ao escrever este texto. Porque felizmente o que une os dois lados é o sentido de humor.

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"Um lado da família é de esquerda. O outro é de direita. Mas o lado de esquerda é mais conservador e o lado de direita, mais libertário" Roberto Nickson/Unsplash

Sempre tive o coração dividido. Quando os meus pais se separaram, ficou ainda mais claro o fosso entre as duas famílias. A família do pai e a família da mãe. São diferenças subtis, tendo em conta as que existem no mundo, talvez tão ténues como as da agora tão falada distinção entre betos e queques.

Falo de fosso porque era assim que sentia, no meu pequeno coração de criança que começa a decidir que posições tomar e que caminho seguir. Com o pouco horizonte até então desbravado, estas diferenças pareciam abismais. Neste buffet familiar que me foi apresentado, aprendi a servir-me do que mais gostei de cada lado.

Um lado da família é de esquerda. O outro é de direita. Mas o lado de esquerda é mais conservador e o lado de direita, mais libertário. O lado de esquerda é mais silencioso, o outro mais barulhento. Um lado é de ateus. O outro de católicos. Mas os ateus são comprometidos e os católicos, desobedientes. Um lado é de juristas intelectuais que produzem vinho. O outro, de engenheiros e artistas que bebem muito vinho.

No Natal, um lado da família faz um esquema de sorteio e organização das prendas cheio de regras, impecavelmente funcional. Decidiram abolir os embrulhos para proteger o ambiente e para não criar confusão desnecessária. Do outro lado, ninguém dá prendas. “O que seria!” Dão-se presentes. Há embrulhos espalhados por todo o lado, e há sempre uma pessoa que acaba a noite mergulhada nos embrulhos à procura de um envelope perdido. Numa há o Pai Natal. Noutra há o Menino Jesus.

De um lado, só tenho dois tios, título conferido pelo laço sanguíneo. Do outro, há tantos tios como estrelas no universo, sempre prontos a nascer a cada novo jantar de grupo, como supernovas na galáxia.

Um lado é de benfiquistas fanáticos. Outro, de sportinguistas ferrenhos. Um, de jantar às 20h30. Outro, de almoço às 20h30. Um, de oradores hábeis. Outro, de dançarinos animados. Um, de cépticos cautelosos, outro, de espirituais impulsivos.

Aos membros de uma família dou dois beijinhos. Aos da outra dou um beijinho. De um lado, a maioria são homens e do outro, mulheres. Ao jantar, uma família discute política internacional, taninos e História. A outra discute signos, viagens, e se a tia Zitinha estava na Ericeira na semana passada.

Para um lado da família a grande ameaça é o Fascismo. Para o outro é o Socialismo e as pessoas que dizem bom apetite. Num lado da família aplaudem-se discursos eloquentes feitos ao jantar. No outro aplaudem-se tias já alegres a cantar o fado.

Uma família é previsível, os encontros acabam sempre da mesma maneira, cedo e com cumprimentos cordiais. A outra também é previsível: ou acaba tudo a dançar ou lavado em lágrimas, de madrugada. Numa, os tons de voz permanecem os mesmos. Noutra, os gritos atropelam-se.

Para uma família, vou de vestido vermelho. Para a outra de vestido encarnado. Uma, faz na sanita. Outra, na retrete. Uma diz põe. Outra diz mete. Mentira, as duas dizem põe, era para rimar. E para irritar a minha mãe.

Sei que não chateio ninguém da minha família ao escrever este texto. Porque felizmente o que une os dois lados é o sentido de humor. Além da generosidade, da bondade, da beleza e da elevação. E falo disto porque é verdade, mas também porque vem aí o Natal e eu quero receber tanto as prendas como os presentes.

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