Morreu António Feliciano, o “último projeccionista ambulante” de Portugal: “Eu sou o ‘cinema’”

Pelo Alentejo e não só marcou gerações. Dono do cineteatro GiraSol em Milfontes, será o último de uma profissão em extinção: projectou filmes de terra em terra por mais de meio século. Tinha 82 anos.

vila-nova-milfontes,cultura,odemira,cinema,culturaipsilon,alentejo,
Fotogaleria
António Feliciano REUTERS/Rafael Marchante
vila-nova-milfontes,cultura,odemira,cinema,culturaipsilon,alentejo,
Fotogaleria
António Feliciano REUTERS/Rafael Marchante
vila-nova-milfontes,cultura,odemira,cinema,culturaipsilon,alentejo,
Fotogaleria
António Feliciano REUTERS/Rafael Marchante

Morreu o homem que deu filmes e sonhos a muitas gerações, especialmente pelo Alentejo. António Feliciano Inácio, dito o último projeccionista ambulante com actividade continuada no país, tinha 82 anos e morreu esta terça-feira. Criador do Cineteatro GiraSol, em Vila Nova de Milfontes, Odemira, passou boa parte da sua vida a levar o cinema de terra em terra, desde os anos 1960.

Nascido em Sabóia em 1940, António Feliciano começou a projectar filmes em 1963. "Uma vida, a vender sonhos e ilusões, mas também a distribuir a cultura que só o cinema ensina", dizia o "homem dos filmes", como muitos cresceram a chamar-lhe, ao jornal Sudoeste em 2020, numa celebração da sua carreira.

Foram décadas com a sua carrinha a chegar às aldeias e vilas, a passar pelas terras a anunciar pelos altifalantes o "grande filme" que aí vinha para ser mostrado: em muitos locais do concelho de Odemira e municípios vizinhos, pelas últimas décadas do século XX, era um momento quase religioso de celebração. Praticamente sem televisores ainda, sem nenhuns cinemas, longe ainda o vídeo e mais longe ainda a Internet, enchiam-se casas do povo, associações recreativas, quaisquer salas que permitissem a projecção. Ele calculava a sua vida, por alto, em uns quatro milhões de quilómetros e quatro mil filmes mostrados.

Foto
REUTERS/Rafael Marchante

Com os filmes às costas

Feliciano começou a carreira ainda muito jovem como ajudante, precisamente, de um projeccionista de cinema ambulante. Não em vão, Cinema Paraíso era um dos seus filmes. Em pequeno, já se fascinava com o milagre do cinema. Em Sabóia, "estava de tal modo fascinado com aquilo que, com uma lanterna e uma caixa de sapatos, inventei um projector. E fazia sessões no barraco do burrito, para os vizinhos. Mais tarde, dois rapazes lá da aldeia criaram uma empresa de cinema ambulante", contou numa conversa com o Diário de Notícias.

Assim teve as primeiras cine-experiências e acabaria, no meio de uma conversa na Zambujeira, como nos filmes, a tornar-se sócio de outro projeccionista ambulante. Fundaria uma sala de cinema na sua terra, que tem hoje precisamente a Rua do Cinema (mas sem cinema), depois realizaria o seu sonho, a abertura de um verdadeiro cineteatro, o GiraSol, em Milfontes. Isto sem nunca deixar as andanças com os filmes às costas, pela costa e região alentejana, mas também por outros pontos do país - até muito recentemente, colaborava ainda com um projecto municipal de Cinema Ambulante nas Aldeias de Odemira.

Foto
REUTERS/Rafael Marchante

A sua carreira de projeccionista, assim como a sua sala de cinema à grande e à antiga (278 lugares), sofreram com os efeitos da revolução tecnológica e digital do século XXI. Mas o lado tão realista quanto romântico do seu trabalho ao longo de quase 60 anos trouxe-lhe outras alegrias: a sua história foi sendo contada por jornais e media de todo o mundo, com direito a grandes reportagens, documentários – casos de Cinema com Gente Dentro de Rui Pedro Lamy e Diogo Vilhena, 2007; até um documentário ficcionado, de Rosa Coutinho Cabral, Cães sem Coleira, 1997 –, ou mesmo uma canção – Cinegirasol, pel' Os Azeitonas, com direito a vídeo em animação stop motion.

Entre as distinções recebidas, foi agraciado com a Medalha Municipal de Mérito do concelho de Odemira em 2006, um reconhecimento pela "extraordinária acção em prol da comunidade enquanto agente da cultura, designadamente no cinema, junto da população odemirense, do Alentejo e até do país, ao longo de muitos anos".

"A cultura é para todos e deve chegar a todos", acreditava Feliciano que, numa conversa com a Reuters, confessava lamentar ver a sua profissão ambulante extinguir-se: "É uma pena", dizia, "que, quando eu morrer, não haja ninguém para ir de aldeia em aldeia a mostrar um filme."

Foto
REUTERS/Rafael Marchante

"Quando eu me for, o cinema itinerante será mencionado em artigos, mas apenas como uma memória", rematava.

Aqui fica o artigo, memória do homem dos filmes que um dia confessou: "Às vezes sinto que eu sou 'o cinema'".

REUTERS/Rafael Marchante
REUTERS/Rafael Marchante
Fotogaleria
REUTERS/Rafael Marchante
Sugerir correcção
Ler 2 comentários