Livros de biologia falam pouco da crise climática (e só nas últimas páginas)

Conteúdos sobre crise climática nos livros académicos diminuíram desde os anos 1990. E as raras páginas dedicadas ao tema concentram-se mais nos efeitos catastróficos do que nas soluções, diz estudo.

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Os livros universitários de introdução à biologia apresentam pouco conteúdo sobre crise climática Tima Miroshnichenko/DR

Os livros universitários de introdução à biologia apresentam pouquíssimo conteúdo sobre crise climática – e as raras páginas dedicadas ao tema concentram-se mais nos efeitos catastróficos do que nas soluções. Esta é uma das conclusões de um estudo, publicado nesta quarta-feira na revista científica PLOS ONE, que analisa 57 obras editadas ao longo de 50 anos nos Estados Unidos (EUA).

“Ficámos muito surpreendidas com quão pequena é a secção sobre mudanças climáticas nestes livros, mesmo nos mais recentes. As passagens mais longas têm pouco mais de 100 frases. Isto equivale a cinco páginas de um livro de bolso de Harry Potter”, afirma ao PÚBLICO a bióloga Jennifer Landin, co-autora do artigo e investigadora do departamento de ciências da vida da Universidade Estatal da Carolina do Norte, nos EUA.

Juntamente com Rabiya Arif Ansari – a primeira autora do artigo –, Jennifer Landin examinou dezenas de livros universitários publicados entre 1970 e 2019. O objectivo era compreender não só como as alterações climáticas eram tratadas nas obras, mas também avaliar como a abordagem do tema evoluiu ao longo de meio século.

O trabalho das investigadoras mostra que a mudança do clima foi um tema que conquistou gradualmente espaço editorial, chegando a apresentar um pico na década de 1990. Depois disso, precisamente no período em que as ameaças climáticas se tornaram mais óbvias, a atenção dedicada à crise climática passou a ser menor.

“Esperamos que aqueles que são responsáveis pela elaboração de currículos dêem maior ênfase ao conteúdo das mudanças climáticas e comecem a abordar o tópico mais cedo. Actualmente, o tema é abordado em cerca de três páginas a cada mil, e aparece bem no final dos livros. Há muito por onde melhorar”, observa Jennifer Landin, numa resposta enviada por email.

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O estudo mostra que os assuntos ecológicos perderam espaço para a biologia molecular e celular nas últimas décadas Nothing Ahead/DR

A ordem em que os conteúdos são apresentados, contudo, não mudou ao longo das décadas: as alterações climáticas surgem sempre no finzinho dos livros universitários. Nos anos 1970, um aluno teria de já ter lido cerca de 85% do livro para finalmente chegar ao tema do clima. Já na década de 2010, este tema só começa a ser tratado após viramos em média 97,5% das páginas da obra.

O estudo sugere que autores, editores e professores reconsiderem a ordem, aparentemente fixa, em que os conteúdos são estudados nos cursos de biologia. A proposta consiste em começar logo com os temas tangíveis, como a ecologia e os ecossistemas. E só depois afunilar o conhecimento para os organismos até chegar aos processos invisíveis a olho nu.

“Recomendamos que os livros didácticos comecem com conteúdos ligados à ecologia e aos organismos, em vez de bioquímica e temas à escala intracelular. A aposta nos assuntos em larga escala permite que os alunos se revejam nos conteúdos e sublinham a importância académica destes temas”, refere a investigadora.

Mesmo dentro do capítulo da crise climática, o foco mudou ao longo dos anos. Se antes havia um esforço em descrever o efeito de estufa, agora é dada maior atenção aos efeitos das alterações climáticas, com particular ênfase na perturbação dos ecossistemas.

Mitigação e adaptação esquecidas

O estudo também mostrou que a proporção do texto dedicado a medidas de adaptação e mitigação atingiu o pico na década de 1990. Nesse período, cerca de 15% das passagens sobre o clima referiam soluções. Nas últimas décadas, apenas 3% destes excertos contemplavam saídas para a crise climática.

“Surpreendeu-nos que a cobertura dos efeitos das alterações climáticas tenha quase duplicado, mas que [simultaneamente] o espaço dedicado às soluções tenha caído para quase nada. Isto transmite a mensagem de que o problema do clima é desesperador”, afirma a bióloga ao PÚBLICO.

As autoras recomendam que o estudo dos efeitos da mudança climática, que “podem ser assustadores ou deprimentes”, seja combinado com conteúdos sobre mitigação e adaptação ao clima.

“Incluindo medidas que os alunos possam adoptar para reduzir a pegada carbónica ou promover mudanças. Por exemplo, a crise climática afecta a agricultura e, por isso, as escolhas alimentares têm um grande impacto nas emissões de carbono. Esses dois assuntos podem ser combinados”, sugere Jennifer Landin.

No estudo da PLOS ONE, as duas autoras encorajam a comunidade científica e as instituições de ensino “a reflectir sobre o equilíbrio do corpo docente e dos [conteúdos nos] cursos de biologia geral”. Sublinham que “todos tópicos são importantes”, mas lamentam que os assuntos ecológicos tenham perdido tanto espaço para a biologia molecular e celular nas últimas décadas.

O artigo incentiva também os editores e outros responsáveis pela elaboração de materiais universitários a contratar mais ecólogos, comunicadores de ciência e investigadores na área do ambiente.

“Se a função dos livros didácticos é preparar os alunos para as suas carreiras e vidas futuras, as mudanças climáticas serão extremamente importantes e devem ter mais destaque nos textos de biologia”, afirma a bióloga.

Como surgiu o projecto?

Jennifer Landin conta que este projecto nasceu quando estava a folhear um livro didáctico publicado há quase meio século. Movida pela curiosidade, a investigadora foi espreitar quais eram os conteúdos sobre conservação que eram trabalhados nos anos 1970, ou seja, antes de as alterações climáticas alcançarem um consenso científico. Ao folhear as páginas antigas, encontrou uma surpresa.

“A mudança do clima já estava lá! Ficámos realmente espantadas com o facto de as alterações climáticas já estarem nos nossos textos [universitários] há 50 anos”, afirma a investigadora, que alimenta uma paixão por livros didácticos de biologia publicados antes dos anos 1950.

A bióloga, que também é ilustradora, explicou ao PÚBLICO como ficou fascinada por estas obras antigas “há uns anos”. Começou então a coleccionar e estudar esses volumes dedicados ao ensino universitário da biologia, muitos deles repletos de belíssimas ilustrações científicas.

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Rabiya Arif Ansari ainda era uma estudante universitária quanto começou a investigar a representação das alterações climáticas nos livros de biologia Jennifer Landin/DR

“Até começar a trabalhar neste artigo, não havia percebido como é difícil encontrar as várias edições de livros de biologia da década de 1970. Foi uma época de grandes mudanças sociais e isso se reflecte nas obras. Esta ideia emerge também da nossa investigação: os livros didácticos espelham as condições e os ideais da sociedade [que os produziu]”, afirma Jennifer Landin.

A análise dos textos foi realizada durante a pandemia de covid-19. Rabiya Arif Ansari – que, na altura, ainda era uma estudante universitária – tinha acabado de começar o projecto no primeiro trimestre de 2020. Com o anúncio do confinamento, o trabalho teve de ficar várias semanas em “banho-maria”.

“Rabiya entrou em contacto comigo alguns meses depois porque estava muito entediada em casa, queria trabalhar na pesquisa. Então passámos a encontrar-nos todas as semanas, ao longo de dois anos, numa sala de conferências vazia. Sentávamos em lados opostos de uma grande mesa, usando máscaras enquanto trabalhávamos. Rabiya realmente conseguiu tirar o máximo de proveito de uma situação má”, conclui Jennifer Landin.

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