Concurso da DGArtes: determinação ou teimosia?

Como se explica que um homem esclarecido, inteligente e culto como Pedro Adão e Silva, esteja mais inclinado para fazer disto uma ‘birra’?

A tendência de qualquer um de nós, quando assume um cargo de chefia, é querer ‘marcar terreno’ através da determinação em qualquer assunto. É humano, é natural. Mas quando a determinação decorre em terrenos escorregadios e resolvemos não ouvir o clamor crescente de indignações (e digo-o bem, assim no plural) essa determinação facilmente escorrega, mesmo que involuntariamente, para o lado da teimosia. Deixa de ser carácter e é tangente ao ‘autismo’ político.

Vem isto a propósito de um certo ‘repetimento’ de factos a montante, que ninguém nega e alguns se aplaudem, de Pedro Adão de Silva, enquanto decorrem generalizadamente as manifestações de desagrado da maioria dos candidatos ao Concurso de Apoios Sustentados da DGArtes. O argumento da própria DGArtes para ser ela, sim, a ‘desautorizar’ a Comissão de Avaliação que classificou variadas estruturas e projectos de molde a acederem ao patamar financeiro a que concorreram, é unicamente de natureza financeira. Não colhe. Ou melhor: da DGArtes colherá porque não é ela que determina a verba para tal, mas sim o Ministro da Cultura. E toda a gente saberá, nos meios a tal atentos, que a boa governação do Orçamento de 2022 permitiu ao Estado acumular um significativo ‘bolo’ de dinheiro não executado. Isto é, ‘os cofres estão cheios’, o que, no caso vertente (e outros), poderia aplicar igual prudência nas situações, como esta, de calamidade, acorrendo a uma pequeníssima parte desse excedente.

A resolução do problema ronda, para menos, os 5% desse excedente para acudir à calamidade que significaria (ou significará) uma ‘teimosia’ em não acorrer celeremente ao problema, para, depois, encontrar um novo modelo para estes apoios, que dão sempre borrasca. Trata-se de uma percentagem que fica abaixo daquilo que a então Ministra Gabriela Canavilhas demonstrou ser aritmeticamente – não para o excedente, mas para o PIB – o contributo (cerca de 5%) do sector cultural para o Orçamento de Estado, enquanto neste só se lhe dá cerca de 0,5%. Mais: esses tais 5% do excedente nada têm a ver com os 0,5% do Orçamento, mas antes, no final, números feitos sobre o joelho, mais 0,1% ou menos correspondente ao Orçamento em si executado. Mas, se assim é em termos financeiros, o trabalho, a actividade e a população abrangida, referente às estruturas que se candidatam ao concurso em causa representam, é mais de 60% da vida cultural nacional, crescendo seguramente até aos 90% ou mais, quando falamos das Artes Cénicas.

Dois argumentos ‘defensivos’, um invocado e outro subentendido, de que parte Pedro Adão e Silva, é que nem ele nem o Primeiro-Ministro (numa invocação estranha por desapropriada e quiçá deselegante para com o próprio PM, fazendo-se acompanhar dele, que nada de directo ou indirecto disse, até hoje, sobre isto, nem foi alvo de qualquer crítica nesta matéria sequer) podem desautorizar, nem modificar, as decisões do Júri’. Este já se explicou que isso é, pelo contrário, ‘autorizá-lo’, pese o que pessoalmente penso deste sistema, mas é o que o Ministro da Cultura herdou e aceitou; o segundo é que isso não corresponde aos factos. Por duas razões, desde logo.

A primeira é que aquilo a que eu chamo, para mais rápida compreensão da crítica ao modelo, ‘Júri ad-hoc’, não pode ser repetido quando se passa para o estreito campo do Direito Administrativo. O ‘Júri’ não é um Júri, mas sim uma Comissão de Avaliação, o que faz toda a diferença. A sua função circunscreve-se à atribuição da pontuação, conforme determinam as regras do próprio concurso. Não é ela, Comissão, que ‘julga’, porque tão só (é suposto) faz uma análise técnica. Quem despacha é o Director-Geral das Artes em conformidade com o normativo do concurso, até onde as verbas lho permitem. Mas quem está autorizado a rever essas verbas é o Ministro da Cultura para se pôr em linha com os resultados da avaliação da Comissão para tal nomeada.

A isto pode obstar o Ministro das Finanças não alocando a verba necessária para o reforço necessário, dir-me-ão. Mas além do baixo significado e da possibilidade real de isso ser feito, não me parece mesmo nada que a tal se opusesse. Nem ele, nem quem mais o poderia também impedir: o PM. Porque basta recordar o que este disse do primeiro, então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, num elogio justo a propósito de uma outra calamidade no sector provocada pela covid. “Se não fosse ele [Dr. Fernando Medina, actual MF] a apoiar muitos dos nossos melhores artistas [artistas de Lisboa, subentende-se], estaríamos hoje muito mais pobres”. Peço desculpa se a transcrição não é ipsis verbis, mas, não o sendo, anda, mesmo formalmente, muitíssimo próxima no conceito que exprime. Se o fez, numa altura em que tantos outros problemas de urgência e inesperados a epidemia havia soltado, certamente não o deixaria de fazer agora como Ministro de Portugal e já não só PCM da capital. Mais ainda porque quer ele, quer o seu antecessor, hoje o PM, sempre tiveram uma grande simpatia e desempenho muito positivo no que se refere nos seus mandatos na autarquia em relação à cultura.

De resto, só na figura do Requerimento Hierárquico(1) estão previstas as reversões das decisões do organismo inferior hierárquico (artigos 174.º, parágrafo 2.º e artigo 178.º, parágrafo 2.º, alínea h – só para citar duas evidências no Código do Processo Administrativo, edição de 2001), como é o caso, pois trata-se da DGArtes e de nenhum Júri. Deixar passar para essa fase é que poderia ser interpretado como uma ‘desautorização’ da DGArtes, o que não seria adequado porque não pode ela tomar por si a decisão política (no sentido da administração da coisa e do bem público e não no âmbito político-partidário) que se impõe e já, antes que seja tarde: para os artistas e para o respeito pelo bom-senso do próprio Ministro diante da opinião pública. De resto, se esta medida não carece do apoio de outros partidos, pois estamos com uma maioria absoluta no Parlamento, estou certo de que, mesmo que tal decisão quisesse legitimar-se de forma generalizada, poucos ou nenhum dos actuais partidos parlamentares (à excepção do Chega) deixariam de a ‘referendar’. Bem como o Presidente da República, em procura constante da estabilidade e da maior consensualidade possível.

Como se explica, então, que um homem esclarecido, inteligente e culto como Pedro Adão e Silva, esteja mais inclinado para fazer disto uma ‘birra’? Não se explica a não ser por, tendo tomado conta do cargo há relativamente pouco tempo, persista no erro de não estar a ver a fronteira entre determinação e teimosia, que vem dos que (mal) o aconselham. Reverter a calamidade não será (seria) um passo atrás. Significará um passo à frente de quem quer salvar da calamidade as artes em Portugal. Queremos acreditar.

1) A Seiva Trupe, de que sou o Director Artístico, não recorreu à figura jurídica da audiência de interessados, estando a trabalhar, com o apoio de jurisconsulto, no requerimento hierárquico: seria como ir ao mesmo ‘juiz’ em vez de passar à Relação; e se por um estranho desígnio passasse à frente da estrutura que está no último lugar, iria, objectivamente, ser ela, ST, a responsável por excluir esses companheiros. Ou seja: subtrair ao teatro uma (outra) estrutura, quando a única coisa que a ST quer é adicionar.

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