Zelensky, da comunicação à lenda

Em nenhum outro conflito da Humanidade, a comunicação, em todas as suas dimensões, desempenhou um papel tão instrumental e preponderante no desenrolar da própria guerra.

A chefe da intelligence americana (DNI) revelou recentemente que, nos próximos meses, o conflito na Ucrânia poderá abrandar na sua intensidade militar, atendendo à chegada do Inverno e às dificuldades que se impõem no terreno para ambas as partes em confronto. Embora este prognóstico de Avril Haines não seja partilhado por alguns analistas do Institute for the Study of War (ISW), think tank que se tem dedicado minuciosamente à leitura do conflito através de fontes abertas, uma coisa é certa, o caudal mediático sobre a guerra tende a perder força à medida que o conflito se arrasta no tempo e que a fadiga comunicacional se vai instalando nas opiniões públicas das nações aliadas europeias.

Este tem sido um dos maiores receios de Volodymyr Zelensky, que cedo percebeu que um dos seus aliados mais poderosos no combate à Rússia seria precisamente a “comunicação”. Exímio como poucos nesta arte e um profissional da área, o Presidente ucraniano tem liderado pessoalmente, desde o início da invasão a 24 de Fevereiro, esta frente de batalha, mostrando uma eficácia estrondosa e, sobretudo, um resultado muito constante e regular (o que nem sempre tem acontecido no campo militar). Recorrendo a todo o seu conhecimento e a uma equipa que já o acompanhava dos seus tempos de entertainer e comunicador nato de massas, Zelensky foi mantendo a alta intensidade comunicacional, cumprindo cirurgicamente o seu “plano de comunicação”, com uma estratégia clara, mensagens-chave bem definidas e orientações muito assertivas para todos os speakers (políticos e militares) autorizados para tal. Na verdade, todo este plano tem sido implementado com uma solidez e disciplina férreas, do topo da cúpula política à frente de batalha.

Cada um cumpre religiosamente o seu papel. Zelensky desempenha o dele, sempre bem articulado com o resto da sua equipa, em particular com um dos assessores do chefe de gabinete da Presidência. Mykhailo Podolyak, antigo jornalista, tem sido a segunda figura mais relevante em termos de comunicação externa. Funciona quase como um porta-voz da Presidência, muito activo nos media e, sobretudo, nas redes sociais, onde parte desta guerra se tem travado. Tornou-se uma figura de alto perfil, contrastando com o discreto chefe de gabinete da Presidência, Andriy Yermak, antigo produtor de cinema e amigo e colaborador de longa data de Zelensky na área da comunicação. Yermak foi um dos principais responsáveis pela eficaz e criativa campanha eleitoral que levou Zelensky à vitória nas presidenciais de 2019.

Na frente de batalha, com acesso muito condicionado aos jornalistas, só os militares autorizados falam, devidamente briefados e enquadrados. Não há dispersão da mensagem e o trabalho dos repórteres é “orientado” ao máximo, em linha com uma estratégia previamente definida, integrada num amplo esforço de guerra. Com as naturais condicionantes e restrições inerentes ao conflito, há um forte constrangimento nas liberdades jornalísticas e nas garantias do dever de informação, com a estrutura militar ucraniana a controlar eficazmente a dinâmica mediática de acordo com orientações políticas superiores, procurando potenciar comunicacionalmente aquilo que vai acontecendo no terreno para alavancar a capacidade de Kiev contra o inimigo russo.

Um trabalho que tem sido desempenhado com elevado profissionalismo. Nada é fruto do acaso ou do improviso. Tudo resulta do planeamento. Mas Zelensky teve também o mérito de se rodear de uma equipa muito competente e sólida, com gente oriunda da televisão, do jornalismo, do marketing e da consultoria de comunicação. Este trabalho reflecte-se não apenas no estilo e na forma da comunicação de Zelensky, como em toda ofensiva comunicacional externa, na potenciação das várias plataformas digitais, assim como na eficaz coordenação entre o nível governamental e o poder local. Também o registo e o tom da mensagem são cuidadosamente trabalhados, seja numa comunicação verbal ou num vídeo para publicar nas redes, por vezes, recorrendo-se a técnicas marketeiras de propaganda que, quando bem feitas, são sempre eficazes no apelo às emoções.

Foto
Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia e exímio comunicador REUTERS

Zelensky é o comandante em exercício desta ofensiva comunicacional que, discretamente, tem contado também com apoio externo a nível de agências e de consultores, tais como a consultora de lóbi, Yorktown Solutions, de Washington, e a agência de public relations Karv Communications, de Nova Iorque. Personalidades individuais também têm desempenhado uma acção importante no âmbito da estratégia de comunicação de Kiev, como o advogado Andrew Mac, partner da Asters, firma de advogados ucranianos em Washington, e assessor pro bono de Zelensky. Temos ainda antigos políticos americanos que estão em contacto permanente com a Presidência ucraniana e actuam como influenciadores junto do poder em Washington e de meios de comunicação social.

De certa maneira, quem tem experiência de terreno nestas áreas consegue identificar bastantes elementos comuns à comunicação mais corporate na forma como Zelensky elaborou e põe em prática o seu plano, o que não é de estranhar, se tivermos em consideração que tanto ele como o seu núcleo mais próximo têm nas public relations (na acepção americana do conceito) uma componente essencial na sua matriz profissional. É quase como se a guerra estivesse a ser conduzida em função de um plano de comunicação e não tanto em função de uma estratégia militar delineada pelos generais. Ou seja, Zelensky, pela primeira vez na história das lideranças militares, enquadrou a guerra numa lógica de public relations e não as public relations numa lógica da guerra.

Em nenhum outro conflito da Humanidade, a comunicação, em todas as suas dimensões, desempenhou um papel tão instrumental e preponderante no desenrolar da própria guerra. Com esta inversão, Zelensky alterou a natureza do próprio conflito, potenciando ao máximo as ferramentas que tinha ao seu dispor e que dominava, consciente da sua robusta superioridade face às “armas” comunicacionais do inimigo russo. Porém, Zelensky tem a consciência de que, para aspirar à vitória final, precisa de manter consigo os “hearts and minds” dos seus aliados e concidadãos e, por isso, a ofensiva comunicacional nunca abrandou nem vai abrandar. Zelensky fez da comunicação um meio eficaz na mobilização dos ucranianos, na moralização das suas tropas e na sensibilização das opiniões públicas externas. Concomitantemente, tem utilizado a comunicação como arma ofensiva, que se tem revelado temível para o inimigo, pela sua função hiperbólica, quer na ridicularização da hecatombe das forças russas, quer no enaltecimento dos feitos dos soldados ucranianos.

Foto
A célebre imagem de Churchill com uma Thompson durante uma inspecção em Hartlepool, 1940 DR

Mas Zelensky foi ainda mais longe na sua estratégia. Ciente da importância do mito e da lenda em tempo de guerra, e inspirado em figuras como Winston Churchill, o líder ucraniano sabia que era preciso construir uma aura transcendente à figura do político convencional – aquele que nunca inspira nem vence conflitos. Na excelente e arrojada biografia que escreveu sobre Churchill, Boris Johnson, conhecedor como ninguém destas dinâmicas, destaca precisamente essa construção, através de um episódio que aconteceu no final de Julho de 1940, quando a Alemanha tentava destruir a Força Aérea britânica: “Churchill desloca-se à cidade de Hartlepool para inspecionar as defesas. Detém-se perante um soldado britânico equipado com uma arma de fabrico americano, uma Thompson SMG, espingarda semiautomática de 1928. Churchill arranca-a das mãos do soldado e empunha-a, de cano apontado para baixo e para a frente, como se estivesse a patrulhar o litoral britânico. Vira-se para encarar a câmara… e a imagem que daí resulta torna-se um dos grandes retratos da sua determinação de resistir.” Churchill era um oportunista astuto em termos de comunicação e viu ali um momento que o ajudaria na construção da tal lenda e mito.

Da mesma maneira que Zelensky, à primeira oportunidade que vislumbrou, lançou os alicerces da sua própria mitologia, quando, perante a oferta do Presidente Joe Biden em providenciar transporte seguro para o retirar de Ucrânia, lhe terá respondido: “I need ammunition, not a ride.” Na verdade, ninguém sabe exactamente quem disse o quê e a quem. Esta declaração surge de passagem pela primeira vez num take da Associated Press a 26 de Fevereiro, dois dias a seguir à invasão russa, citando um responsável da intelligence americana com “conhecimento directo da entrevista”.

É bastante provável que esta frase, com tom mais aventureiro e desafiante tal como reproduzida pela AP, não tenha sido literalmente proferida por Zelensky ao Presidente dos EUA. É mais verosímil que a ideia subjacente à frase tenha sido transmitida de forma mais polida e diplomática, mas menos espectacular e poética. Nem Zelensky ou Biden alguma vez a confirmaram, mas rapidamente a mesma foi posta a circular com um objectivo definido e grande eficácia, tornando-se num dos símbolos da resistência e do carácter heróico do Presidente ucraniano. Seja como for, é pouco relevante a procura dos factos, porque o que fica para a História é a frase que ajudou a construir a tal aura que Zelensky necessitava para travar o combate da sua vida. Como diria o editor do jornal Shinbone Star no final do brilhante filme de John Ford de 1961, The Man Who Shot Liberty Valance, “quando a lenda se transforma num facto, publica-se a lenda”.

Sugerir correcção
Ler 5 comentários