Entrevista

“Os jornais escolares alicerçam o gosto pela escola”

Teresa Calçada, ex-comissária do Plano Nacional de Leitura 2027, é membro do júri do Concurso Nacional de Jornais Escolares há quase 30 anos.

Teresa Calçada voltou este ano a avaliar os jornais escolares, em papel e digitais, que participaram no concurso nacional
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Teresa Calçada voltou este ano a avaliar os jornais escolares, em papel e digitais, que participaram no concurso nacional Guillermo Vidal

Os representantes dos jornais escolares vencedores já se tinham despedido quando Teresa Calçada se cruzou com Ana Pereira, a representante do açoriano Se Bem nos Lembramos, num dos corredores da redação do PÚBLICO. “Falaste muito bem”, disse-lhe com entusiasmo. Momentos antes, Ana tinha recebido o 2.º prémio de melhor jornal de escola e dirigia-se àqueles alunos que não agem por medo ou insegurança: “Arrisquem; arrisquem tudo o que têm, porque os maiores sucessos surgem quando mais coisas estão em perigo.” A força nas palavras desta aluna, e de todos os jovens que no final de novembro passaram pelo auditório da redação do PÚBLICO, em Lisboa, comoveu Teresa Calçada.

O Concurso Nacional de Jornais Escolares, dinamizado pelo projeto de educação para os media PÚBLICO na Escola, teve a sua primeira edição em 1991/92. Pouco tempo depois, Teresa Calçada viria a juntar-se ao júri. Ao completar três décadas (com um interregno pelo meio), a iniciativa continua a contar com a ex-comissária do Plano Nacional de Leitura 2027 como jurada.

Teresa Calçada licenciou-se em Filosofia, mas foi no mundo das bibliotecas e da leitura que desbravou caminho. Começou a trabalhar como Técnica do Instituto Português do Livro nos anos 80 e, nessa mesma década, integrou o grupo de trabalho que definiu as diretrizes da Política Nacional de Leitura Pública, que serviu de base à Rede de Bibliotecas Municipais. Seguiu-se a criação da Rede de Bibliotecas Escolares. Até maio deste ano, foi comissária do Plano Nacional de Leitura 2027.

Comentava, antes de começarmos a entrevista, que foi muito entusiasmante ouvir os discursos dos jovens vencedores do Concurso Nacional de Jornais Escolares. O que é que sustenta esse entusiasmo, ao fim de todos estes anos no júri?

Tenho muita estima e entusiasmo por aquilo que representa puxar os valores pessoais dos miúdos. Muitas vezes são circunstâncias extracurriculares que revelam essas criaturas fantásticas que estão dentro de cada um. Os concursos podem ser isso mesmo: têm uma certa disputa, têm um interesse coletivo, permitem contactos que eram inesperados. No caso concreto desta entrega de prémios, a conversa que cada um fez ao agradecer o prémio foi de extraordinária qualidade. Eles falavam bom português, tinham presença, sabiam comunicar, praticamente não houve repetição no modo como abordaram o seu trabalho à volta dos jornais escolares. Tudo isso deu uma alegria àquela sessão que me emocionou mesmo. Vê-los ali, a maioria sem papel, a falar melhor do que nós, só pode dar uma grande alegria. Eu sou fã dos jornais escolares há muitos anos, porque acho que alicerçam competências e conhecimento, alicerçam um gosto pela escola que não acontece em todas as atividades que lá se desenvolvem.

Tem sido uma constante?

De um modo geral, foi acontecendo sempre. O Manuel Carvalho, diretor do PÚBLICO, levantou a hipótese de no próximo ano a entrega de prémios voltar a ser num auditório grande, onde não só os representantes pudessem estar presentes, e eu acho isso extraordinário. São marcas que ficam connosco. Qualquer um de nós se lembra de alguns acontecimentos na vida escolar, para o bem e para o mal, que realmente marcaram: um bom professor, um bom projeto, uma visita de estudo, um trabalho voluntário. Há coisas que não se esquecem mais. Nos jornais escolares, a questão do favorecimento da linguagem, do vocabulário, da articulação escrita e falada são fatores de empoderamento destes miúdos, sejam eles de que estrato social forem. A palavra é a coisa mais fantástica que o Homem tem em termos de comunicação, de sentimento, de estética, da sua qualidade como ser humano para poder argumentar, defender-se, defender as suas ideias.

Tem de ser a escola a puxar para cima. A escola é o lugar por excelência da instrução, e da sociabilização que vem com a instrução — e portanto tem de ter exigências, tem de ter metas que estão acima daquilo que é o lugar com que [os alunos] entram na escola, daí a importância da escrita e da leitura, que ligo aos jornais escolares.

De que forma?

A escrita e a leitura são fundacionais para qualquer conhecimento, dão-nos ferramentas para entrar no mundo das ciências, das artes, nas humanidades. Não são territórios fáceis; são territórios complicados, exigem um código — temos de aprender a ler, temos de treinar a leitura, desse treino melhorar a compreensão leitora, melhorar as frases. São sistemas de organização de pensamento. E hoje, por maioria da razão, ao contrário do que se possa pensar, quanto mais exigentes são as literacias mais exigente é a aprendizagem dessas literacias, e o jornal escolar favorece estas literacias. A literacia mediática hoje tem de ser muito desenvolvida porque se não, como a literacia clássica, fica pelo grau zero da compreensão.

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Fevereiro de 2009. Teresa Calçada entrega uma menção honrosa às representantes do jornal "O despertar da porca", do Agrupamento Escolar de Murça Fernando Veludo/NFactos

Recuando aos tempos em que integrou o júri do concurso pela primeira vez, o panorama da literacia mediática está completamente diferente ou há questões basilares que se mantêm?

Há questões basilares da literacia que se mantêm, porque nós não somos bons leitores, a nossa fluência leitora não é treinada. E a nossa escola, que deu saltos qualitativos fantásticos, não pode não compreender que, dado esse desenvolvimento, temos de acompanhar outras literacias sem prejudicar o desenvolvimento daquelas que são fundacionais. A leitura e a escrita, sendo uma prática mais complexa, é negligenciada quando implica esforço. Toda a formação de 12 anos de escolaridade obrigatória tem de favorecer as literacias básicas, ler e escrever, e as literacias digitais. E é muito importante também educar a atenção.

Tem-se falado muito nos tempos de atenção, que são cada vez menores.

E que estão associados ao mundo digital e às tecnologias de comunicação de hoje, que são muito imediatas. Se não formos hipócritas, sabemos que nós próprios já somos assim — voamos de um sítio para o outro, depois guardamos uma coisa e vamos lá mais tarde, copiamos aqui e colamos ali. Isso naturalmente dispersa a atenção, diminui o tempo de atenção e a memorização. A memorização educada é muito importante. Por que é que algumas pessoas mais velhas por vezes têm condição de ter uma literacia melhor do que os miúdos que nasceram e se criaram no digital?

Porquê?

Porque nós temos backoffice. Não há maneira de produzirmos se não tivermos conhecimento. Se não sabes pesquisar, se não tens metodologias, se não sabes ler e escrever, podes ter a destreza, mas onde é que vais buscar o conhecimento? Não se pode desvalorizar o aspeto funcional da prática da leitura e da escrita para adquirir conhecimentos que depois, por sua vez, são utilizados para melhorar essas literacias. E é importante não confundir a tecnologia com o conhecimento; todas as tecnologias levaram a algum conhecimento, e todas têm vantagens, mas é preciso aprender, não se nasce ensinado. Os jornais escolares parecem-me um lugar por excelência para poder praticar esta compreensão.

No balanço destes últimos anos do concurso, as bibliotecas escolares surgem como um dos projetos mais importantes para os jornais escolares. É uma relação inevitável?

Em alguns casos é lá que se faz o jornal porque é um universo dentro da escola que é, por definição, cultural. Aqui a valorização da leitura, da escrita e da procura é que te transporta de um mundo mais básico para a compreensão mais elaborada que nos falta muitas vezes. A leitura, com todas as suas variáveis — mais exigente, mais prolongada, mais abstrata —, é um modo de não ser tomado só pelos sentidos. O que a educação da literacia mediática faz é valorizar o logos — o saber — versus o pathos — as emoções. É uma linguagem muito emotiva, muito rápida, muito espontânea, mas que só é literacia se for feita com saber — e isso é muito importante que os alunos percebam. Nós sabemos que a educação faz a diferença. Às vezes isto não é assim tão autoevidente, sobretudo quando se vive em sociedades tão desiguais socialmente, como é o nosso caso, em que a expectativa é baixa, a mobilidade social também, e às vezes parece que se ganha mais dinheiro ou se consegue uma vida profissional melhor deixando de estudar, deixando de ter mais competências e mais literacias. Finalmente vem-se mostrar, estatisticamente, que não é assim, mas no imediato (e esta é uma sociedade muito imediata), é isso que parece. Esse é o papel fundamental da escola: valorizar o conhecimento.

Faz sentido, portanto, pensar no jornal como presença regular na escola — seja na sala de aula ou na biblioteca escolar?

O jornal deve ser objeto de análise. Acho que se fosse professora, saindo um jornal escolar na escola, não me ocorreria não o utilizar. Ao mesmo tempo, o jornal escolar pode fazer uma ponte. Não vejo que a existência de um jornal escolar não deva levar à assinatura dos jornais, que em princípio as bibliotecas deveriam fazer. É fundamental contrariar as impressões, a opinião. Os jornais de referência têm reportagem, entrevista, têm fontes, e tudo isso é um manancial que se aprende na escola, mormente na feitura do jornal da escola, para perceber o valor acrescentado que um jornal feito a sério tem. Acho que hoje se desvaloriza essa edição e os miúdos têm de compreender que as fontes não valem todas o mesmo. É muito importante que, quando andas na escola, percebas a importância do escrutínio das fontes, as discussões que existem à volta das fake news. Faz-me tristeza que as bibliotecas escolares e públicas não tenham jornais em papel. Pensar que o Concurso dos Jornais Escolares não traz consigo um acrescento de hábitos de consumo dos jornais é péssimo.

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Guillermo Vidal

Em que sentido é que termos jovens e crianças com um sentido crítico perante as notícias pode fazer com que os adultos à sua volta sejam, também eles, mais críticos?

É desejável e é possível. Desde logo, a questão do dito pensamento crítico tem de assentar nessas habilidades: seres capaz de ler, de ler com propriedade, de ler com fluência, de ler compreensivamente. Essa prática leitora é que cria algum backoffice para seres crítico, porque, se não o tiveres, és crítico de quê? Claro que as famílias, às vezes, no seu dia-a-dia praticam isso com alguma naturalidade. Sabem mais, têm mais vocabulário, são capazes de ter uma conversa com princípio meio e fim. Outras vezes não acontece, por razões sociais, pela falta de tempo. A escola tem de encontrar meios e propósito de conseguir combater isto. É por isso que acho que é muito importante hoje dizer que, pese embora tantos projetos que a escola tem, e que são legítimos, é fundamental que não se desfoque da leitura e da escrita.

Os indicadores...

Os indicadores de leitura e escrita em Portugal estão num nível que nos deve fazer perceber que isto nos empobrece muito e que, ao empobrecer-nos, nos limita, nos torna menos cidadãos, menos capacitados para sermos críticos. Se é assim, cavamos um fosso de iliteracia que nos condena muito socialmente. É como se tivéssemos dado um grande salto na educação pós-25 de Abril e agora não soubéssemos dar o passo de gigante que nos está a desafiar. Isto é verdadeiro para a escola obrigatória e é verdadeiro para a escolaridade de adultos.

E os jornais escolares, têm sido um espelho dos tempos que se vão vivendo, de alguns saltos que se foram dando na escola e na vida em sociedade?

Têm, isso têm. Os primeiros jornais que vi eram só em papel, e agora não só não são apenas em papel como têm dois ou três formatos. É o espelho da complexificação das literacias, e já há jornais que revelam a transliteracia e mostram como estas se mexem umas com as outras, e como um jornal faz eco delas. Isso é muito bom. Sou a favor de que se faça um concurso [para distinguir os melhores jornais], que se puxe uns pelos outros. No Concurso Nacional de Jornais Escolares, tenho sentido uma valorização do local, do nacional, alguns têm notícias internacionais, e tudo isso se constitui como um incentivo ao conhecimento, à informação, à crítica e às interrogações à volta da verdade.

Há também uma participação civil que é muito importante ser louvada e sublinhada: são jornais da escola que contam com empresas, com ajuda das famílias, que contam até com dinheiro para se poder fazer algumas edições, e que permitem o contacto com algumas pessoas da sociedade que nós às vezes na escola não vamos buscar. O Instagram é uma aldeia e sabemos como é que os algoritmos funcionam, por isso é muito importante sair do lugar de conforto. O jornal escolar é um confronto, é uma exigência entre pares. É ter a certeza que é preciso ler, ler mais, ir à procura, usar diferentes meios, diferentes recursos, validar. Esse mundo da informação não é autoevidente, portanto o confronto é fundamental. Depois, trabalhar em equipa, com colegas e professores e outras pessoas que se juntem.

O jornalismo escolar é hoje em dia por vezes apontado por ser muito feito dentro dos portões da escola. Nota uma diferença na forma de fazer?

Eu acho os jornais mais abertos, vem mais mundo de fora para dentro da escola. Acho que há menos textos mais longos, daí que as reportagens sejam menores do que nós desejaríamos. Sinto a falta da crítica literária, debates sobre revistas, sobre livros… mas sei que a leitura hoje não é da mesma forma nomeada como fonte de saber como outras coisas que parecem trazer o saber. Hoje os jornais também são muito mais atraentes graficamente, são mais diferentes uns dos outros, têm linguagens estéticas que se percebe que são influenciadas por linhas que [os alunos] vão conhecendo, e têm temas mais fraturantes, que antigamente não tinham. São menos previsíveis.