Gonçalo Salgueiro e Frei Fado, “uma exaltação de alma e um abraço fraterno”

Sexto disco do fadista Gonçalo Salgueiro, Frei Fado, dedicado e Frei Hermano da Câmara (e incluindo um dueto com ele) estreia-se este sábado ao vivo, no Porto.

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Gonçalo Salgueiro DR

Gonçalo Salgueiro estreou-se nas lides discográficas com um tributo devoto a Amália Rodrigues e agora, passados vinte anos, gravou um disco dedicado a outra das suas grandes referências, Frei Hermano da Câmara, que inclui um dueto com ele. Pelo meio, fez um caminho que foi das casas de fados até ao papel de Cristo no musical Jesus Cristo Superstar, de Filipe La Féria, ou a um projecto onde uniu a sua voz à da soprano de origem romena Elena Moşuc, Operfado. Em nome próprio, gravou No Tempo das Cerejas (2002), Segue a Minha Voz (2006), Gonçalo Salgueiro (2009, reeditado em 2013 com duetos com Fernanda Maria e Beatriz da Conceição), Sombras e Fado (2017) e Mãe (2017). O seu novo disco, Frei Fado, estreia-se este sábado ao vivo no Porto, no Teatro Sá da Bandeira, num espectáculo marcado para as 15h30.

Nas vésperas do espectáculo, Gonçalo explica ao PÚBLICO o que o motivou: “Acho que no meu subconsciente/consciente sempre estiveram, desde que comecei a cantar, dois tributos que eu tinha de fazer, porque são as personagens que moldaram um pouco o meu gosto e a minha persona artística dentro do fado. Não por emulação, porque não gosto de imitações, detesto. E aí sempre estiveram a Amália Rodrigues e o Frei Hermano da Câmara. Porque desde que me conheço enquanto ser, era o que eu ouvia em casa. Obviamente existem outras pessoas, a Teresa Tarouca, a Fernanda Maria, a Beatriz da Conceição, o João Ferreira-Rosa, o João Braga. Além da música clássica. Fui realmente um privilegiado, ao poder, desde cedo, usufruir destes sons.”

Por Amália, Gonçalo diz ter “uma devoção”. Já em relação a Frei Hermano, a quem a sua avó chamava “a voz do Céu”, diz que é como se a música dele o abraçasse: “O que aquele timbre me traz, sempre, é uma mistura entre uma pequena exaltação de alma e um abraço fraterno. Com Amália, já não fui a tempo, porque comecei a cantar no ano em que ela partiu, mas com o Frei pensei que devia fazê-lo agora, com ele vivo. Porque depois vai haver muitas homenagens, que é normalmente o que se faz neste país, faz-se uns espectáculos e ganha-se uns trocos. Mas as homenagens, quando as pessoas estão connosco e estão bem, como está o Frei, têm de ser feitas com a presença delas, para sentirem a importância que têm e como tocaram a vida de outras pessoas, neste caso a minha. E eu não faria este disco se não tivesse a bênção do próprio Frei Hermano. Se ele não estivesse receptivo, não o faria, por respeito.”

Mas Frei Hermano, hoje com 88 anos, não só se mostrou receptivo como se dispôs a gravar com Gonçalo, em dueto, o tema Um novo coração me dá Senhor. “Que é um tema da liturgia e é lindo”, diz Gonçalo Salgueiro. No disco, há outros temas associados à liturgia, como Luz terna suave no meio da noite ou Pai Nosso, a par de, todos eles com música de Frei Hermano da Câmara, poemas de Juana de Ibarbouron (Suave milagre), Reinaldo Ferreira (Quero um cavalo de várias cores), Padre Abel Varzim (Cristo antigo), Santa Teresinha (Sabeis Senhor), Manuel de Andrade (Mãos abertas, mãos de dar), Fernando Pessoa (Gládio), Miguel Torga (Manhã), Adelaide Villar (Jesus Cristo Anda na rua e Avé Maria), bem como do próprio Frei Hermano (À Santa Face), a par de um original de Gonçalo Salgueiro que dá título ao disco, Frei Fado, com música de Pedro de Castro, responsável pela produção e direcção musical.

A escolha de repertório não recaiu sobre os temas mais conhecidos ou populares de Frei Hermano da Câmara, por uma razão que Gonçalo explica assim: “Nós vivemos hoje numa época completamente diferenciada. Todos os grandes chavões do Frei Hermano, à excepção do Fado da despedida e do Rapaz da camisola verde, já os cantei ou gravei. Já gravei Mãe, Túnica negra, Cantilena, é algo que está disponível. Por isso, fiz o que já fizera com No Tempo das Cerejas [2002], dedicado a Amália: peguei nas coisas que, mesmo sendo menos conhecidas, me tocam profundamente.”

Apesar de já estar “tudo alinhavado antes da pandemia”, Gonçalo diz que durante a pandemia ainda mais certeza e segurança teve para avançar com este trabalho. “De repente, num daqueles dias em que estamos a ouvir rádio e a meditar sobre qualquer coisa, percebi que o nosso fado fez uma curva acentuada ao pop, numa geração que vai dos vintes aos quarentas. Coisa que não condeno, e que quando é bem feita até acho o máximo. Mas deixa lacunas graves.” Atento aos programas de discos pedidos, ele percebeu que, dos seus próprios discos, os temas que as pessoas mais pedem são “os mais ligados a uma certa espiritualidade, a uma certa tristeza. E vêm de um público envelhecido que, de repente, parece que deixou de constar para as estatísticas. Como se o fado se tivesse demitido de trazer algum conforto espiritual às pessoas.”

Este foi outro motivo que o levou a avançar com Frei Fado, tendo a seu lado cinco músicos: Pedro de Castro e Luís Guerreiro, na guitarra portuguesa; Flávio Cardoso e Alfredo Almeida, na viola de fado; e Francisco Gaspar, na viola baixo. “Eu não sou ninguém para espalhar a fé, nem quero, nada disso”, diz Gonçalo. “Mas a minha voz e a minha música até é capaz de o fazer. E aqui tentei não só dar a essas pessoas algo que acho que continua a fazer falta, e poder prestar homenagem a um dos meus heróis musicais. Foi algo que me deixou muito feliz, com o próprio a constar do disco.”

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A capa do disco

O tema-título nasceu de uma música de Pedro de Castro. Gonçalo ouviu-a, gostou muito dela e propôs-lhe fazer “uma coisa dedicada ao Frei”, apesar de este não ser um disco de inéditos. “No próprio dia, naquele serão, eu fiz a letra para a música do Pedro, que é lindíssima e muito sensível, e assim nasceu Frei fado, o único inédito do disco. E ver a reacção do Frei, ao ouvi-lo, foi mais do que recompensa de tudo.”

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