Há vida para além do futebol, mas vamos continuar a falar do Qatar. O Parlamento Europeu (PE) e o conjunto das instituições comunitárias vivem por estes dias o maior escândalo da sua história. Ponto por ponto, vamos ao que aconteceu:

Sacos de dinheiro e uma vice-presidente detida

A polícia federal belga deteve seis pessoas na sexta-feira, no âmbito de uma vasta investigação que envolveu buscas a 19 residências, onde foram encontrados sacos com centenas de milhares de euros em dinheiro vivo, e aos escritórios do Parlamento Europeu. Entre os detidos, Eva Kaili, vice-presidente do PE

Quais são as suspeitas? O que está em causa?

Apesar de as autoridades belgas falarem apenas num "país do Golfo", o que é assumido pelos mais altos representantes europeus são suspeitas de uma operação de lobby ilegal por parte do Qatar junto do Parlamento Europeu, e não só. Concretamente, de pagamentos a troco de declarações públicas e de decisões e votos favoráveis ao Qatar. Há quatro pessoas formalmente acusadas de corrupção, organização criminosa e lavagem de dinheiro, incluindo Eva Kaili.

Quem é Eva Kaili?

Vice-presidente do PE de Janeiro deste ano até esta terça-feira, quando foi destituída pelos eurodeputados, com 625 votos a favor, um contra (do croata Mislav Kolakušić)​ e duas abstenções, Eva Kaili, de 44 anos, era uma estrela da política grega. Militante dos socialistas do PASOK desde os 14 anos, foi jornalista no canal grego Mega, onde apresentava noticiários, foi eleita para o parlamento helénico em 2007, onde ganhou protagonismo ao fazer frente ao próprio primeiro-ministro socialista George Papandreou em plena crise financeira, e para o Parlamento Europeu em 2014. 

Sendo uma das poucas mulheres gregas em lugares de destaque nas instituições europeias, como nota o jornal Politico, Kaili gozava de ampla simpatia por parte dos gregos e da imprensa helénica. Jovem e fotogénica, a sua vida pessoal alimentava também as páginas da imprensa cor-de-rosa (e o Instagram): um namorado nove anos mais novo (Francesco Giorgi, também detido), amigos ricos (como o "bilionário" greco-russo Ivan Savvidis) e viagens a destinos idílicos como a Sardenha foram compondo toda uma imagem sem o cinzentismo habitualmente associado à política helénica.

Na frente política, Kaili era uma das maiores entusiastas no Parlamento Europeu da tecnologia de blockchain e das criptomoedas. Apesar de eleita para a bancada europeia dos Socialistas e Democratas (de que o PS europeu faz parte), mantinha boas relações com a Nova Democracia, o principal partido grego do centro-direita, chegando mesmo a protagonizar rumores sobre uma mudança para a ND, onde era apontada como potencial candidata à Câmara Municipal de Salónica, a sua cidade natal. 

O que é que Kaili é acusada de ter feito?

As posições pró-Qatar de Kaili são públicas e contrastantes com a linha defendida pelos seus colegas de partido e por Bruxelas e as capitais europeias. Em Novembro, quando o PE aprovou uma resolução a condenar a morte de trabalhadores estrangeiros no emirado anfitrião do Mundial de Futebol, a eurodeputada grega tomou o púlpito para defender o Qatar como um "líder dos direitos laborais". Na ocasião, o discurso chocou diversos parlamentares. "Os lobistas não exigem um apoio público tão indiscutível. Normalmente, pedem formas mais subtis de promover os seus interesses, como nas votações. O discurso de Kaili foi extraordinário", disse então o eurodeputado grego Giorgos Kyrtsos.

Também recentemente, Kaili apareceu sozinha no Qatar a substituir uma delegação parlamentar europeia cuja visita ao emirado, precisamente para observar e discutir as condições de trabalho dos imigrantes, fora cancelada pela Shura, a assembleia qatari. Em Doha, a grega limitou-se novamente a elogiar efusivamente as reformas laborais do país árabe. Os colegas do PE acusaram Kaili de comportamento desleal e de ter sido convidada apenas para elogiar o regime.

O registo dos votos da vice-presidente do PE inclui ainda a defesa da liberalização de vistos para cidadãos do Qatar.

Quem são os outros suspeitos do Qatargate?

  • Francesco Giorgi, o namorado de Kaili, que também trabalha no PE como assessor do eurodeputado Andrea Cozzolino, é outro dos detidos. De acordo com os jornais Le Soir e La Repubblica, terá já confessado os seus crimes às autoridades belgas, apostado em conseguir a libertação de Kaili: "Vou fazer tudo o que for possível para que a minha companheira seja libertada e possa tomar conta da nossa filha de 22 meses".
  • Alexandros Kailis, o pai da eurodeputada, que foi detido com uma mala cheia de dinheiro, mas foi entretanto libertado. Não enfrenta qualquer acusação formal.
  • Pier Antonio Panzeri, antigo eurodeputado italiano e presidente da ONG Fight Impunity, está detido e acusado, bem como a sua mulher, Maria Colleoni, e a filha Silvia Panzeri. Sobre a Fight Impunity, da qual Giorgi é co-fundador, recai a suspeita de funcionar como uma organização de lobby não registada. 
  • Niccolò Figà-Talamanca, director de outra ONG que partilha o mesmo endereço em Bruxelas com a Fight Impunity, é outro dos acusados.
  • Luca Visentini, secretário-geral da Confederação Sindical Internacional, organização que tem dado nas vistas por passar ao lado do coro de críticas às condições de trabalho dos imigrantes no Qatar. A suspeita, agora, é de que se trata de uma posição paga pelo emirado.

E consequências?

Multiplicam-se as promessas de reformas nas instituições europeias.

No Parlamento Europeu, a presidente Roberta Metsola, que considera o caso como um "ataque contra a democracia europeia", diz estar em preparação um "vasto pacote de reformas" que inclui protecção reforçada para os denunciantes destes casos, um código de conduta para os contactos com representantes de países terceiros e a proibição dos chamados "grupos de amizade" informais entre eurodeputados e países, que funcionam sem qualquer monitorização, sobretudo no que diz respeito a prendas e viagens pagas por regimes estrangeiros.

A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, pediu aos seus serviços que "verificassem" todos os contactos mantidos com o Qatar. Apesar de a CE ter afirmado que, até ao momento, não foram encontrados indícios de ilegalidades, a imprensa já anda à "pesca" de declarações questionáveis de altos responsáveis europeus sobre o Qatar. Como no caso do comissário para a Promoção do Modo de Vida Europeu, o grego Margaritis Schinas, que elogiou no passado os "progressos concretos e tangíveis do Qatar em matérias laborais".

A nível partidário, tanto o PASOK grego como os Socialistas e Democratas europeus expulsaram Kaili das suas fileiras.