Na manhã da passada quinta-feira, 8 de Dezembro, a investigadora Maria José Roxo atendeu o telefone ao PÚBLICO na sua casa, na Amadora, com toda a paciência do mundo e repetiu o que tantas vezes e há tanto tempo diz. A geógrafa seria uma das poucas pessoas que não estava surpreendida com a catástrofe na região de Lisboa. Estava, sobretudo, desiludida, irritada, frustrada.

A chuva "forte e persistente" acordou a cidade de Lisboa, acordou o país. Pior que isso: surpreendeu Lisboa e o país. E esse é o maior equívoco da tragédia em que estivemos mergulhados nos últimos dias. Há muito tempo que os especialistas e investigadores falam na catástrofe que paira sobre a cidade de Lisboa e muitas outras do país. Cidades impermeabilizadas, sem a ajuda do chão de terra para absorver a água. Cidades sem bacias de retenção capazes de acolher a chuva a mais como uma esponja e que, nos dias bons, podem ser lagos alimentados pelas nuvens inseridos em zonas de lazer.

"Tudo o que era estrutural e que podia controlar este tipo de situações falhou. Agora, só nos resta correr atrás do prejuízo, como tantas vezes falei. Como se isto fosse inédito... não é! Lamento, não é inédito. A área de Algés e de Alcântara e outras zonas da cidade sofrem com frequência com este tipo de situações, com menos intensidade. Noutras áreas do país também. Nós, que fazemos investigação, passamos o tempo a falar nestas coisas e é como se estivéssemos a pregar para os peixes", protestou Maria José Roxo. O sermão era inevitável, a catástrofe não era.

Uma mulher morreu numa cave inundada em Algés. Célia Sousa conseguiu evitar mais estragos porque há uns anos instalou dois degraus na entrada que colocaram a sua casa em bicos de pés no ribeiro que invadiu a estrada que liga Frielas a Loures. João Paulo, dono de um café, quase se deu por satisfeito por ter tido "só" água na entrada da casa "A Ponte" quando uns dias antes teve a água pelos joelhos. "O rio foi arranjado, mas ainda não está a dar conta do recado", lamentava. André Moleiro brincou que conseguiu entrar na sua loja "quase de barco". Quase. Optou por procurar alguém com um carro "alto" que não se afogasse na rua.

Em Alcântara, António Gama falava no susto de ver a água entrar pela janela no pequeno rés-do-chão na Travessa Teixeira Júnior onde vive com a mãe acamada que "foi tirada em braços pelos bombeiros, pela janela" e hospitalizada. O bombeiro Fernando Azevedo partilhava a angústia: "As pessoas estavam em pânico. Chegámos à parte em que tivemos de ter prioridades. Quem é que vamos salvar? Felizmente, conseguimos salvar todos."

Ainda na inundada Alcântara, Marisa da Conceição agarrava na vassoura para limpar a entrada do prédio, deixando passar o vizinho com uns sapatos e umas meias na mão suplentes para trocar quando chegasse ao trabalho. "Parece que estamos no século XIX", reclamava.

Na pastelaria Seara Verde, em frente ao Consulado de Angola, António Fonseca fazia a mesma limpeza na esplanada e contas à vida somando a outros prejuízos três portas de madeira inchada, Cada uma custará à volta de 300 euros.  "Quem vai pagar? Sou eu. E fui eu que estraguei?"

Não, António. Foi a água da chuva encurralada na cidade que estragou as portas. Foi a água que se encurrala em Lisboa que levou Célia Sousa a precaver-se e a colocar a casa em bicos de pés com mais dois degraus na entrada a servir de obstáculo. Foi a água da chuva encurralada que angustiou o bombeiro confrontado com a impossível decisão sobre "quem é que devia salvar". E, não João Paulo, não é o rio que não está a dar conta do recado. Somos nós.

Não devíamos ter de calçar as casas com degraus altos, nem de tirar pessoas pelas janelas e, muito menos, deixá-las morrer em caves inundadas. As cidades têm de se prevenir, não apenas remediar. E não é só Lisboa, que foi alvo de um comboio de tempestades. Ou o Alentejo, menos falado nas notícias, que viu cair um rio atmosférico sobre as vidas naquela terra sem chuva.

No meio da desgraça que inundou Lisboa, vimos o presidente da câmara lisboeta, Carlos Moedas, fazer duas coisas que os autarcas aprendem a fazer bastante bem e rapidamente: encontrar culpados (de preferência, os seus antecessores ou entidades mais ou menos abstractas) e colocar dinheiro em cima do problema. Assim, Moedas "culpou" as alterações climáticas para justificar a dimensão da tragédia e anunciou que o antigo projecto de construção de túneis de escoamento de centenas de milhões de euros vai (um dia) ser uma realidade. Esperemos que não chova muito até lá.

Ficam, desde já, alguns avisos e esclarecimentos. As alterações climáticas (como todos sabemos e João Miguel Tavares lembrou, têm costas largas) podem ter um peso na intensidade e frequência destes fenómenos extremos. Mas Lisboa não transbordou por causa da mudança do clima. Transbordou porque mesmo sabendo dessas alterações e sabendo da fragilidade do desenho da cidade e da ausência de infra-estruturas capazes de lidar com fenómenos extremos, continuamos a deixar a porta aberta para o caos.

Por outro lado – e, depois, não venham dizer que os cientistas não avisaram – o plano de drenagem com túneis de escoamento não chega para resolver este problema. Temos de ouvir os cientistas. Limpar sarjetas, criar bacias de retenção, ter mais terra à vista nas cidades de cimento e betão. Temos de prevenir em vez de remediar. E isto vale para o país todo.

No final do dia 8 de Dezembro, Carlos Moedas tentava tranquilizar as pessoas e prometia que Lisboa iria voltar à normalidade no dia seguinte. Todos sabemos o que queria dizer. Estava a falar da limpeza da cidade. Porém, aproveitando a deixa, o que esperamos é que Lisboa (e o resto do país) não voltem à normalidade. Esperemos que mudem. Que se prepararem. Caso contrário, vamos continuar a chover no molhado.