O Coração Ainda Bate. Um calendário novo

Inês Meneses escreve sobre a mentira.

Como é que sabes que estás vivo? Estás a viver a verdade, com tudo o que isso implica: dores esporádicas, dores crónicas, desilusões esporádicas e crónicas, a certeza de que muitas vezes ficaste aquém do que sonhaste. Já agora, não é o sonho que comanda a vida, mas sim a verdade. Acordas amarrotado, com a boca a saber a papel de jornal. Demoras até querer enfrentar o dia. Sabes que da verdade não escaparás, mesmo que a tentes torpedear.

Talvez por isso, a pior coisa que alguém próximo nos possa fazer seja mentir. Mentir não é só passar por cima da nossa verdade, fintá-la, tentar parecer mais esperto do que a vida. Mentir é magoar duas vezes: o outro, tristemente apanhado desprevenido, e a nós próprios em contínuo. Mentir retira beleza à vida, e nós, por mais que tentemos, nunca nos vamos esquecer do momento em que fomos sobressaltados com palavras que antes não cabiam no formato dos nossos dias. A mentira estica-se à nossa frente como o casaco que eu tricotava em miúda e, não aguentando a ansiedade, puxava pelas partes fingindo que eram maiores, quase acabadas. Aquele casaco aumentado pela força das minhas mãos, que teve o meu esforço mas não a minha paciência, parecia ter a forma da mentira. Talvez os outros não a vissem, mas eu sabia que era mentira. Talvez os outros não vejam muitas vezes a mentira, mas quem mente sabe que o faz: um casaco que cresceu depressa de mais.

O dia em que descobri a mentira mais grave da minha vida fez-me parecer o casaquinho pequeno. Enternecedor.

O dia em que me mentiram iniciou um calendário novo: os dias ganharam novas leituras, até as que não existiam.

Não temos todos a capacidade de ver a mentira da mesma forma: uns absolvem os mentirosos pondo-se no lugar deles: todos um dia poderemos ser o mentiroso? Outros, por ordem de prioridades, não julgam a mentira com a gravidade que lhe estou a atribuir agora. A mentira dilui-se na espuma dos dias. Vulgariza-se, deixando os que valorizavam a verdade um bocadinho atordoados. A mentira é triste porque deixamos de ser especiais quando somos apanhados por ela. Quem mente não se apercebe disso.

Sabemos de políticos que mentiram, gente que admirávamos que o fez sem grande estorvo, amigos que talvez tenham pedido desculpa depois, amores que acabaram ali. Outros continuaram coxos, à procura de novo equilíbrio.

A mentira é um vestido que não nos volta a caber. Está ali a fitar-nos no armário. Não somos nós a ver o vestido, mas ele a lembrar-nos por que razão está ali, mesmo se não nos cabe.

A mentira é uma coisa terrível que nos faz perder a inocência indefinidamente e nos traz as dores iniciais da adolescência, percebendo, afinal, que nunca aquela espada funda enterrada no peito vai desaparecer.

O dia em que me mentiram é um guarda-fatos do qual não me apercebo do fim. Pensei que o guarda-fatos era bonito e perfeito. Talvez o problema fosse meu: vê-lo apenas assim era a primeira mentira. Era imperfeito como todos somos.

Viver com a mentira requer aprendizagem. Ou nos vimos embora no momento em que somos surpreendidos, ou conseguimos ser tão fortes como a vida e retirar-lhe importância, ou então passamos a ser igualmente mentirosos e perdemos a medida grande que nos serviu de prancha segura para mergulhar numa piscina sem fundo. Outra vez um problema de perspectiva: preciso de ver o fundo da piscina.

A mentira é tão ardilosa, que não sabemos se arromba o coração dos desconfiados ou dos crentes. Dói muito na mesma. Vai doer para sempre se não quiseres praticar o mesmo código.

O meu lado infantil dirá que a mentira cheira mal. Tem um cheiro fétido que atravessa as paredes como a humidade. Pois é, a mentira é húmida, entranha-se de forma triste – agarra-se a nós.

Passamos meia vida a tentar esquecer a mentira que nos magoou. Vivemos, antes, meia vida sem ela. Viveremos uma vida plena depois de tudo?

Está sempre nas nossas mãos, como aquele casaquinho que não tive paciência para ver crescer até ao fim.

O duelo da verdade e da mentira vai cansar-nos até nos lembrarmos do que foi certo e errado. Há quem desista. E deixa de doer.


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