Julgamento de estudantes: “Qualquer praxe perturba muito mais do que nós perturbámos”

Na segunda sessão do julgamento de estudantes que, pelo clima, ocuparam a Faculdade de Letras, ouviram-se críticas ao director da faculdade. A 16 de Dezembro arguidos saberão a sentença.

Foto
O julgamento dos estudantes tem dado origem a manifestações de apoio aos arguidos Guillermo Vidal

A última pergunta feita em tribunal aos quatro estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), no caso da ocupação contra os combustíveis fósseis, foi se aceitavam fazer trabalho a favor da comunidade? “Nemo, Artur, Ana e Mateus – não têm medo do banco dos réus”, clamava nesta sexta-feira à tarde um pequeno grupo de manifestantes à porta do edifício F do Campus de Justiça de Lisboa, em apoio ao quarteto que tinha acabado de sair do edifício. Aparentemente, os quatro jovens também não têm medo do trabalho comunitário, segundo o que responderam ao juiz.

Mas não foi à segunda sessão do julgamento que os arguidos ficaram a conhecer as consequências legais de terem recusado sair da FLUL, na noite de 11 para 12 de Novembro, depois de a Polícia de Segurança Pública (PSP) ter sido chamada pelo director daquela faculdade, Miguel Tamen, para pôr o fim à ocupação. O juiz só deverá pronunciar a sentença a 16 de Dezembro, numa última sessão marcada para as 15h.

Foi um dia longo para os estudantes, que se sentaram nas cadeiras dos réus pouco depois das 10h, e também para os amigos e familiares dos arguidos que estavam presentes. A manhã foi passada a ouvir testemunhas chamadas pela defesa que fizeram parte da organização da ocupação da FLUL, e estudantes e professores que contactaram com o movimento naquela semana – de 7 a 11 de Novembro, onde outras escolas e faculdades também viveram ocupações no movimento Fim ao fóssil: ocupa!

À tarde, observaram-se alguns vídeos do momento em que os estudantes foram retirados das instalações – três dos quatro arguidos colaram as mãos ao chão e tiveram de ser arrancados pela polícia de choque. De seguida, ouviram-se as últimas palavras dos arguidos, que já tinham prestado declarações na primeira sessão do julgamento, a 29 de Novembro, onde falaram também Miguel Tamen e outras testemunhas.

Depois, foram proferidas as posições finais do Ministério Público, que argumentou ter ficado provado a existência de um acto de desobediência à ordem de dispersão à reunião pública, pedindo uma multa. E da defesa, que pediu a absolvição dos quatro jovens.

“Foi por um motivo honroso: o fim ao fóssil, a defesa da justiça climática”, argumentou durante a sessão André Studer Ferreira, advogado de defesa dos quatro arguidos, acrescentando que não houve legitimidade para a direcção da FLUL retirar os jovens já que não tinha ocorrido uma perturbação grave e efectiva à ordem e à tranquilidade pública. Ou seja, a resposta foi desproporcional.

Foto
Os quatro estudantes da Faculdade de Letras que foram retirados pela polícia à força das instalações Guillermo Vidal

O advogado referiu ainda a Lei de Bases do Clima, de 31 de Dezembro de 2021, como um argumento legal pela defesa dos jovens. As alíneas a) e c) do ponto dois do sexto artigo, sobre os “direitos em matéria climática”, dizem estarem garantidos “o exercício do direito da acção pública e de acção popular” e “o direito a pedir a cessação imediata da actividade causadora de ameaça ou dano ao equilíbrio climático”.

“Os próprios [arguidos] entendem que, sendo a causa tão forte, não é legítimo haver uma interrupção como a que houve”, disse André Studer Ferreira ao PÚBLICO. Caso o juiz não escolha a absolvição dos jovens, a defesa pediu que haja apenas uma admoestação, que funciona como reprimenda, “mas não tem nenhuma condenação material”, como tem a multa ou o trabalho comunitário, explicou o advogado.

Praxe incomoda mais

“Temos sempre a esperança de sermos absolvidos, mas não sabemos ainda”, disse por sua vez Ana Carvalho, à saída da sessão. A jovem arguida tem sido a porta-voz dos quatro jovens nestas últimas semanas. “Esperemos que no fundo percebam que a nossa luta é legítima, que lutar pelo clima não é crime”, referiu, explicando que o comportamento das pessoas que ocuparam a FLUL durante aquela semana foi pacífico.

Dois temas recorrentes durante a sessão da manhã, que acabaram por surgir nas questões feitas às testemunhas, foram a perturbação que a ocupação fez durante aquela semana – um dos argumentos que levou a direcção a chamar a polícia – e a impossibilidade de os estudantes falarem directamente com Miguel Tamen, quando se viram obrigados a terminar a ocupação, na sexta-feira dia 11 de Novembro.

Catarina Ribeiro, estudante da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, que se juntou à ocupação na FLUL, disse terem sido acusados de “fazer barulho no primeiro dia”, quando iniciaram a ocupação, e de perturbar uma aula durante uma palestra sobre minas, onde bateram palmas no final da palestra. “Dez segundos de dez pessoas a bater palmas. Qualquer praxe perturba muito mais do que alguma vez perturbámos”, argumentou.

O investigador Nuno Marques, que trabalha no Laboratório de Humanidades do Ambiente, no Instituto Real de Tecnologia, em Estocolmo, na Suécia, esteve naquela semana na FLUL e acabou por também ser testemunha. Num contexto de um mestrado, o docente aproveitou para dar uma aula sobre ecopoesia fora da sala, junto da ocupação, e referiu o cuidado que foi tido para não se perturbar o recinto. “Houve uma grande preocupação com o nível de barulho, com a projecção do som, não queriam incomodar as outras aulas”, alegou.

Filipe Carvalho, estudante de mestrado na FLUL, acabou por se aproximar daquele movimento e observou de perto como a situação evoluiu. “Achei desde o início que fazia todo o sentido por chamar a atenção do fim ao fóssil”, referiu, acrescentando que ficou “mais incomodado pela praxe académica que fazia mais barulho, muito mais.” O estudante esteve na ocupação no dia em que foram removidos e critica Miguel Tamen: “O director não mostrou compreensão, demonizou a acção e a forma como os alunos fizeram tudo, do meu ponto de vista foi injusto.”

"Total repúdio"

De acordo com os testemunhos, os estudantes estiveram reunidos com Tamen na segunda-feira (dia 7 de Novembro), quando lhes foi permitido ficarem a pernoitar, e depois na quinta-feira. Segundo Catarina Ribeiro, que ficou encarregada de ser porta-voz e falar com os seguranças, a polícia e a direcção, na reunião de quinta-feira de manhã o director apressou o fim do encontro, disse que voltaria a reunir-se com os estudantes na semana seguinte, mas “não respondeu se poderíamos ficar” a pernoitar durante o fim-de-semana. “‘Estou apenas a assumir que vocês vão estar vivos até à próxima semana’”, disse a estudante, citando o director.

No dia seguinte, quando souberam que iam ser expulsos, os jovens tentaram falar com Tamen, mas apenas conseguiram ter uma reunião com um subdirector, que disse não poder fazer nada. “O mínimo que [Tamen] devia fazer era falar connosco e expor a situação”, frisou Catarina Ribeiro durante a sessão. Depois, a PSP pressionou os alunos para que saíssem e deu-se o acontecimento da retirada à força dos quatro estudantes, que ficou captado em imagens e foi amplamente criticado.

“É de total repúdio o director de uma faculdade pública chamar a polícia para dentro das instalações da faculdade. É uma coisa que acontecia antes do 25 de Abril com alguma frequência”, criticou ao PÚBLICO Sara Figueiredo Costa, jornalista e uma das integrantes da Frente Grisalha, que surgiu após a manifestação de 12 de Dezembro pelo clima e tem vindo a apoiar o movimento de jovens.

“Além disso, há um dado que é relevante: as pessoas que estavam a ocupar a faculdade não estavam a destruir património público, não estavam a vandalizar nada, a bater em pessoas, a ter atitudes agressivas. Estavam no seu espaço de estudo e de vivência, que é também um espaço de discussão política, de pensamento, de participação cidadã”, acrescentou a jornalista, que também marcou presença à frente do edifício F.

É dessa participação cidadã que falou Artur, quando o juiz perguntou se tinha algo para dizer, já perto do fim da sessão desta sexta-feira. “A universidade devia ser um lugar de diálogo onde o direito à manifestação fosse respeitado. Foi um protesto pacífico, estávamos a lutar por uma causa maior. Não conseguiria dormir se não tivesse lutado por uma causa desta magnitude”, disse o arguido.

Nemo, que falou de seguida, recordou o contexto da ocupação, que fez parte de um movimento maior, de mais escolas e faculdades, tanto a nível nacional como internacional: “O nosso é um caso isolado, é o único lugar onde chamaram a polícia, de choque.”

Contactado pelo PÚBLICO, Miguel Tamen recusou-se a prestar declarações.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários