Morte provocada a pedido do próprio

É importante que se utilizem termos e conceitos correctos, para não gerar equívocos. A expressão “morte medicamente assistida” é equívoca

A Assembleia da República agendou para aprovação o projecto de lei que “… regula as condições especiais em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal…”. A morte medicamente assistida é definida como “… a morte que ocorre por decisão da própria pessoa, em exercício do seu direito fundamental à autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde”.

O que está em causa neste diploma é saber se um adulto, informado, ciente de si e capaz de exercer a sua autonomia pode requerer ajuda para que lhe seja provocada a sua própria morte. A lei condiciona esse direito a requerentes portugueses e determina que o requerente tem de ser “… maior, cuja vontade seja actual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde…”.

Neste contexto há quatro questões que não têm sido bem tratadas.

A morte provocada a pedido já existe no ordenamento jurídico português sob a forma de abortamento provocado, mas, nesse caso, o pedido é feito por terceiros. O que agora se debate é saber se o direito à vida é absoluto, ou se nas condições previstas na lei, em que a pessoa considera a sua dignidade, intimidade e integridade violentadas pela sua condição de vida, esse direito decai em confronto com os outros direitos constitucionais, pois não existe o dever constitucional de impor ou manter a vida a todo o custo contra a vontade do tutelar desse direito. O reconhecimento desse direito exige do Estado legislação que assegure as necessárias garantias e segurança jurídicas.

É importante que se utilizem termos e conceitos correctos, para não gerar equívocos. A expressão “morte medicamente assistida” é equívoca porque 62% dos portugueses morrem em hospitais, e essas mortes são medicamente assistidas. Nenhum desses casos é uma morte provocada a pedido do próprio (MPPP). Por outro lado, os media utilizam o termo eutanásia para referir “… o abate ou ocisão e eutanásia…” de animais, o que não tem nada que ver com MPPP.

O projecto de lei português introduz as expressões “doença grave e incurável” e “lesão definitiva de gravidade extrema” “… que coloca a pessoa em situação de dependência…” como condição para requerer ajuda na MPPP. Contudo, a condição vulnerável do portador de “doença grave e incurável” e/ou” lesão definitiva de gravidade extrema geradora de incapacidades” é regularmente acompanhada em todos os níveis do nosso sistema de saúde e nada disso tem que ver com a MPPP. Percebe-se que a lei exija condições para que o cidadão requeira MPPP, mas o facto de se ter doença incurável com incapacidade extrema é o imperativo moral e cívico para cuidar dessa pessoa sem qualquer estigma que imponha a MPPP.

Já o sofrimento de grande intensidade — “… físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema,… persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa” referido como condição para o pedido de MPPP é razão atendível desde que se assegure que a causa do sofrimento não é aliviável. Aqui, o projecto de lei é omisso porque não assegura a opinião dos especialistas em lidar com o sofrimento humano. O sofrimento que é aliviável não tem de ser intolerável, e isso muda os dados da equação.

A diferença entre “eutanásia” e “suicídio assistido” não tem qualquer sentido, na medida em que o projecto de lei atribui ao requerente a escolha de todas as opções, sendo a fundamentação do pedido de MPPP a mesma para as duas opções. A questão de princípio é a legitimidade de a pessoa informada e capaz de exercer a sua autonomia requerer ou não, de forma reiterada, ajuda para provocar a sua própria morte.

A forma como a morte é consumada é instrumental, não uma questão de princípio, como se depreende do texto legal: … o médico orientador informa e esclarece o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a morte medicamente assistida, designadamente a auto-administração de fármacos letais pelo próprio doente ou a administração pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito, mas sob supervisão médica, sendo a decisão da responsabilidade exclusiva do doente…” Reforça ainda que “… o médico orientador, de acordo com a vontade do doente, combina o dia, hora, local e método a utilizar para a morte medicamente assistida…” e que “… a escolha do local para a prática da morte medicamente assistida cabe ao doente”. No entendimento dos autores, esta é a perspectiva correcta, pois, neste contexto, a consumação da morte é instrumental e determinada pelo critério do requerente.

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