Isto não foi futebol nem política

O que se passou nesta terça-feira, em Doha, entre Irão e Estados Unidos, não foi o futebol que estamos habituados a ver e que esperávamos ver. Mas também não foi política.

Foto
Ream e Ramin no final do jogo EPA/Mohamed Messara

Há vários motivos que levam a que esqueçamos o futebol no Mundial 2022, ao contrário do infame pedido para que esqueçamos o “resto” e nos concentremos no futebol. Portanto, por favor, esqueçamos o futebol.

Mas esqueçamos também a política, aquela dimensão já trivial em qualquer texto que fale de Irão e Estados Unidos da América. Esqueçamos as duas áreas, que o que se passou nesta terça-feira, em Doha, não foi o futebol que estamos habituados a ver e que, lamentavelmente, esperávamos ver. E também não foi política.

Era um jogo entre dois inimigos de sempre no qual quem ganhasse seguiria em frente. Seguiram os Estados Unidos e o Irão, que até estava em melhor posição, acabou o jogo confortado pelos jogadores americanos. Como deve ser – porque isto não era só futebol nem política.

O ambiente no estádio Al Thumama foi algo que ainda estava por ver no Qatar. Já por cá andaram os irrequietos tunisinos, a mistura latina de argentinos e mexicanos num só estádio ou até a ininterrupta corneta ganesa. Mas o que iranianos e norte-americanos ofereceram foi algo diferente. Algo que não foi futebol nem política.

Os iranianos, munidos de cornetas que imitam irritantemente as famosas vuvuzelas, estavam em superioridade numérica. Ainda estamos para perceber, portanto, como é que menos americanos – e sem instrumentos destes – conseguiram não igualar, mas pelo menos equilibrar o apoio sonoro. Possivelmente, porque se havia dia em que quereriam gastar as vozes seria no dia em que poderiam abafar o Irão – apesar de isto não ser futebol nem política.

Este foi daqueles jogos nos quais as incidências em campo só serviam para reforçar o barulho, não para o criar. Ele já estava criado e era permanente – umas vezes com mais Irão, outras com mais states, outras com todos em simultâneo. E que improvável é termos iranianos e americanos a trabalharem em conjunto para alguma coisa, mesmo que apenas para fazerem barulho. Mas isto não era futebol nem política.

Nos hinos nacionais, iranianos e americanos foram dignos. Respeitaram o hino adversário e alguns até o aplaudiram. Porque isto não era futebol nem política.

Na bancada à direita da tribuna de imprensa cantava-se “Iran” e um americano virou-se para o iraniano ao seu lado e acenou que sim com a cabeça como que a dizer “sim senhor”. Logo de seguida, cantou-se “USA” e o iraniano virou-se para o americano e fez exactamente o mesmo gesto. Ambos se desmancharam a rir. Porque isto não era futebol nem política.

E quando, aos 38’, os EUA marcaram? Pulisic lesionou-se quando finalizou e os jogadores não celebraram um golo contra o Irão, preocupados com o colega. Sim, os EUA não celebraram um golo frente ao Irão – talvez dos golos que mais quereriam festejar na história da selecção norte-americana. Para quem acredita em forças superiores, tratou-se de uma ironia poética preparada por uma qualquer entidade. Para quem não acredita, tratou-se apenas de um detalhe sublime, mas essencial, nesta coisa que não foi futebol nem política. Eu sou destes últimos.

Antes de tudo isto começar já tudo isto tinha começado. Começou ainda bem antes desta coisa que não foi futebol nem política. Na antevisão do jogo assistiu-se a uma das conferências de imprensa mais bizarras da história das conferências.

Os jornalistas iranianos dispararam ao treinador e ao capitão da selecção dos Estados Unidos perguntas e provocações como “o que acham de eu não poder entrar no vosso país e vocês poderem entrar livremente no meu?”, “dizes que apoias os iranianos, mas pronuncias mal o nome do nosso país” ou “como se sentem por representar um país em que há tanto racismo?”.

Do lado dos Estados Unidos, foi retirado no site da Federação o símbolo de Alá da bandeira iraniana, naquilo que mais tarde, apesar de corrigirem, justificaram como apoio aos protestos após o assassinato da jovem Mahsa Amini por não usar um véu correctamente.

Foram os únicos momentos em que esta coisa que não foi futebol nem política pareceu, na verdade, futebol e política.

Para este texto não sabia se haveria de fazer um texto jornalístico, tendo de obedecer a algumas regras de uma reportagem, ou uma crónica, com liberdade criativa e discursiva de um texto na primeira pessoa.

Acabei por decidir-me pela crónica, porque o que se viu hoje, no Irão-EUA, merece um relato pessoal. O que foi isto? Talvez tenha sido... bom, não sei. 4300 caracteres depois ainda não sei bem. Mas seguramente não foi (só) futebol. Nem (só) política. E foi bom.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários