“Enfim, (não) esqueçamos isto”

Como vão confrontar o avanço da extrema-direita na polícia e manter Magina da Silva, um diretor nacional da PSP que claramente desconsidera esta questão?

O “esqueçamos isto” de Marcelo Rebelo de Sousa, a propósito do desrespeito no Qatar dos direitos humanos de imigrantes, mulheres e pessoas LGBTQIA+, foi uma tirada infeliz. Também não surpreende a ida das três figuras políticas máximas – Presidente da República, primeiro-ministro e presidente da Assembleia – ao Campeonato do Mundo de futebol, com aprovação do PS, PSD e do PCP e abstenção do Chega. “Não vamos apoiar o regime ou a violação dos direitos humanos, mas a seleção nacional”, diz António Costa, que nos mostra que, quando a seleção joga, fica em stand by a defesa dos sectores da classe trabalhadora mais violentados no capitalismo global que, em condições sub-humanas, constroem estádios e outras infraestruturas para o Mundial de futebol.

Lembremo-nos que foi ainda em agosto deste ano que o chefe da missão diplomática portuguesa no Qatar, Manuel Gomes Samuel, dizia que, ao contrário das pessoas do Norte da Europa, quem tem pele mais escura pode trabalhar debaixo de sol, com temperaturas acima dos 40 graus. A maior parte desses trabalhadores é do Sul Global (sobretudo do Bangladesh, Índia, Nepal, Paquistão e Sri Lanka) e não é preciso ser muito woke para compreender que esta é uma expressão do “capitalismo racial”, assim como para perceber como de uma crítica às elites políticas e económicas no Qatar rapidamente se pode resvalar para generalizações e formas de islamofobia mais e menos flagrantes.

Afinal de contas, as três figuras máximas do Estado português, com amplo apoio parlamentar, “fecham os olhos”, como a esmagadora maioria dos chefes de Estado e até do secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, e só se recusariam a ir caso fossem pressionados por um boicote com maior adesão. Para além dos presidentes da Comissão da UE – Ursula von der Leyen, Charles Michel, Roberta Metsola e Josep Borrell –, não se conhecem mais casos de boicote público. Mas é só no Mundial de futebol no Qatar que “fecham os olhos”?

Há quem diga, como o presidente da FIFA, Gianni Infantino, que as críticas europeias ao Mundial de futebol no Qatar são uma hipocrisia, tendo em conta o historial de violência da Europa no mundo e o modo como se bloqueia a entrada na Europa de pessoas que saem dos seus países em busca de uma vida melhor. Poderia também ter dito que é uma hipocrisia na medida em que o Mundial de futebol já foi realizado em países que deixam muito a desejar do ponto de vista do respeito pelos direitos humanos e, aí, os líderes políticos europeus não os boicotaram. Ou que é uma hipocrisia porque, no fim de contas, os países europeus têm preferido “esquecer” a crise climática e manter relações comerciais com o Qatar para aceder a combustíveis fósseis, como o petróleo e o gás natural.

O “esqueçamos isto” tem sido também a atitude prevalecente no que toca ao crescimento do discurso de ódio e discriminatório na polícia. Foi preciso uma investigação jornalística como aquela recentemente publicada pelo Consórcio de Jornalistas de Investigação para que o Ministério da Administração Interna e a Inspeção-Geral da Administração Interna tomassem a iniciativa de abrir um inquérito sobre estas questões, há vários anos denunciadas por organizações internacionais, nacionais, académicas e figuras públicas, mas sempre desconsideradas pelos seus mais altos responsáveis. Carequinhas de saber. Aqui, a grande preocupação de sindicatos, dirigentes políticos e forças de segurança tem sido a “imagem da instituição” e, para mantê-la, têm preferido fingir que não se passa nada – “esqueçam isto” – a resolver efetivamente o problema. O Sindicato dos Profissionais de Polícia não só não agradece a investigação do Consórcio de Jornalistas de Investigação – afinal de contas, é oferecida de bandeja a possibilidade de sindicatos de polícia mostrarem ao país o quão são “intolerantes” com o racismo –, como ainda deixa escapar no seu comunicado que o fim a que se propõem é a “defesa do cidadão de bem”, o resto que se defenda da polícia.

Como vão confrontar o avanço da extrema-direita, a penetração do racismo, do discurso de ódio e da violência a eles associada na polícia e manter Magina da Silva, um diretor nacional da Polícia de Segurança Pública que claramente desconsidera esta questão? Perante o vídeo onde se vê parte da agressão do agente Carlos Canha a Cláudia Simões (2020), Magina da Silva apressou-se a dizer, antes dos tribunais, que o que ali via era um agente a agir com a força estritamente necessária. Também indeferiu o recurso de Manuel Morais – um dos poucos agentes a reconhecerem publicamente a existência de racismo na polícia – quanto à suspensão de dez dias por ter dito nas redes sociais que André Ventura era uma “aberração” (2021).

O diretor nacional da PSP assinou um despacho que altera as “normas relativas ao aprumo, apresentação e uso de uniforme”, proibindo-se tatuagens que “contenham símbolos, palavras ou desenhos de natureza partidária, extremista, rácica ou de incentivo à violência”. Mas não deixa de ser revelador que sejam dados seis meses para que os agentes removam essas tatuagens, como quem diz, têm seis meses para se esconder.

Foi já na altura em que era diretor nacional da PSP que os agentes condenados no caso da esquadra de Alfragide (2019) continuaram todos ao serviço e que aquele que teve pena efetiva de prisão – Joel Machado (porque em 2013 já havia sido condenado pelo mesmo tipo de crime) – foi promovido poucos dias antes de ser preso. É também Magina da Silva que, num colóquio sobre o Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança, promovido pela IGAI, em 2020, se desvia de uma análise crítica do problema na polícia e de um entendimento da discriminação nas suas dimensões estruturais e institucionais, para colocar a origem do problema na polarização social (ativistas antirracismo e “ativistas” de extrema-direita, que ele designa como “pushers”). Anteriormente, ainda na qualidade de comandante da Unidade Especial de Polícia (2010), Magina da Silva também exigiu, e conseguiu, a compra de veículos blindados, não só para a cimeira da NATO, mas para intervir em “300 zonas urbanas sensíveis” (ZUS), como se de zonas de guerra se tratassem.

Não é preciso ser woke para perceber como os critérios utilizados para classificar uma ZUS (por exemplo, a composição étnica do território) e o tipo de suspensão de direitos que essa norma legitima são formas de racismo institucional que legitimam e acicatam o discurso e a atuação discriminatória dentro da polícia. Magina da Silva parece estar de acordo com as ZUS, mas não pode ser acusado de ter sido o seu mentor. Se o combate ao racismo e discurso de ódio dentro da polícia fosse uma verdadeira prioridade do Governo atual, Magina da Silva teria de ser demitido e teria de ser escolhido alguém mais próximo da postura de um agente como Manuel Morais, que tem, pelo menos, a coragem (e pagou por ela) de reconhecer que existe um problema. Se fosse uma prioridade, seriam despedidos todos os agentes alguma vez condenados por violência policial, identificados como autores de mensagens de ódio, violência e discriminação, seja nas tatuagens, nas redes sociais ou fora do mundo virtual.

Isso resolveria o problema? Isso acabaria com as ZUS e a intervenção policial musculada nesses territórios? Isso acabaria com o artigo 250.º do Código de Processo Penal, que implicitamente sugere uma suspeição sobre pessoas racializadas? Isso acabaria com a criminalização da juventude negra, como expressa o mais recente Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), que associa os jovens da periferia que ouvem hip hop (drill) à criminalidade juvenil? Isso acabaria com os Centros de Instalação Temporária em aeroportos, destinados a deter imigrantes sem garantir o cumprimento dos direitos humanos e nos quais morreu Ihor Homeniuk? Não acabaria, mas seria um passo.

A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico

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