Famílias afegãs usam antidepressivos e ansiolíticos para sedar os seus bebés com fome

A fome não pára de aumentar no Afeganistão desde a chegada dos taliban ao poder. Vendem-se filhas, vendem-se órgãos e medicam-se os filhos para os ajudar a dormir.

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Afeganistão atravessa uma grande crise REUTERS/Ali Khara

Alprazolam, escitalopram, sertralina não são nomes de marcas de comida para bebé. O primeiro é um ansiolítico adequado para neuroses de ansiedade, depressão e perturbações relacionadas com o pânico, indicado apenas quando a doença é grave e incapacitante. Os outros dois são antidepressivos, receitados para tratar episódios de depressão, perturbações de pânico, ansiedade social, perturbação obsessivo-compulsiva e stress pós-traumático. A BBC foi a Herat, no oeste do Afeganistão, e descobriu que há pais a darem estes medicamentos aos seus filhos pequenos e esfomeados para conseguir que eles durmam.

“Os nossos filhos choram sem parar e não dormem. Nós não temos comida”, contou aos jornalistas da emissora britânica Abdul Wahad, que vive nos arredores de Herat. “Então, vamos à farmácia e compramos comprimidos e damo-los aos nossos filhos para que fiquem sonolentos.”

Com Wahad estão mais uma dezena de homens. “Muitos, todos”, respondem quando se lhes pergunta quantos medicam os filhos para os sedar. Ghulam Hazrat tem seis filhos, o mais novo com um ano: “Até a ele lhe dou”, explica, depois de tirar uma lamela de alprazolam (que não é recomendado antes dos 18 anos) do bolso da túnica. Outros mostram aos jornalistas lamelas de escitalopram (contra-indicado para crianças) e sertralina (igualmente contra-indicado, excepto em alguns casos de transtorno obsessivo-compulsivo a partir dos seis anos). Numa farmácia local, cinco lamelas destes medicamentos custam 10 afeganis (onze cêntimos), o preço de um pedaço de pão.

A fome no Afeganistão não é de agora e sabe-se que piorou consideravelmente desde o regresso dos taliban ao poder. Mas não pára de se agravar e terá terríveis consequências nos próximos meses, quando o país se prepara para o segundo Inverno sem acesso a grande parte da ajuda que antes chegava do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, assim como aos sete mil milhões de dólares em reservas do Banco Central Afegão que os Estados Unidos congelaram e transferiram para a Reserva Federal norte-americana.

Enquanto isso, o número de crianças “perigosamente malnutridas admitidas nas clínicas móveis da Save the Children aumentou 47% desde Janeiro, com alguns bebés a morreram antes de poderem receber qualquer tratamento”, disse a organização não-governamental num relatório publicado a 31 de Outubro. Os médicos da Save the Children “estão sobrecarregados com crianças malnutridas e não conseguem dar conta das necessidades”.

A somar ao colapso da economia, que fez disparar preços e desemprego, a seca teve impactos severos nas colheitas, levando muitas famílias a abandonar as suas terras ou a vender os animais para comprar comida. Apesar de as organizações humanitárias “terem fornecido grandes quantidades de comida”, “muitas famílias sobrevivem agora com pão e água durante semanas a fio”, sublinha a ONG, que conta algumas histórias. Todos os filhos de Nelab (nome fictício), de 22 anos, já sofreram “desnutrição aguda grave” – Maryam, a filha de três anos, morreu a caminho do hospital; Mohammad, de dois anos, recuperou, mas Parsto, de onze meses “continua perigosamente malnutrido”.

Pão seco, pão com água

A ONG Médicos Sem Fronteiras também registou este ano um aumento de 47% na taxa de crianças com malnutrição que atende nas suas instalações em todo o país. Na província de Herat, diz a BBC, o centro desta organização é o único bem equipado para tratar casos de malnutrição e serve ainda mais duas províncias, Ghor e Badghis. Nesta região, os casos de malnutrição aumentaram 55% em relação ao ano passado.

Uma mulher disse à BBC que em sua casa se come pão seco de manhã e pão molhado em água à noite.

Nos arredores de Herat, a maioria dos homens trabalham à jorna e desde a mudança de governo, em Agosto de 2021, é raro encontrarem trabalho, conta a BBC. Nos poucos dias em que são contratados não ganham mais de 100 afeganis (pouco mais de 1 euro). As notícias sobre famílias que vendem as filhas para casar – de imediato ou quando atingirem determinada idade – têm sido frequentes, mas, segundo a BBC, também há cada vez mais pessoas a recorrer à venda de órgãos.

Ammar (nome fictício) conta que soube que podia vender um rim no hospital local. Semanas depois de lá ter ido, telefonaram-lhe a marcar a operação, explicou. Recebeu 270 mil afeganis (2900 euros) mas gastou quase tudo a pagar de volta dinheiro que tinha pedido emprestado para alimentar a família. “Se comemos numa noite, não comemos na noite seguinte. Depois de vender o meu rim, sinto que sou meia pessoa, sem esperança. Se a vida continua assim, sinto que posso morrer”, afirmou.

Os jornalistas britânicos encontraram uma jovem mãe que também vendeu o rim, há sete meses. Tal como Ammar, a família devia dinheiro, neste caso da compra de um rebanho de ovelhas – os animais morreram há alguns anos, numa inundação. Mesmo depois dos 240 mil afeganis (2,580 euros) do rim a dívida continua: “Agora estamos a ser forçados a vender a nossa filha de dois anos. As pessoas a quem devemos dinheiro, assediam-nos todos dos dias, dizem ‘se não pode pagar, dê-nos a sua filha’”, descreve. “Sinto-me tão envergonhado”, diz o marido. “Às vezes, sinto que é melhor morrer do que viver assim.”

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