No Porto/Post/Doc, a vida continua a Leste – nem sempre na mesma

Na recta final do festival, notícias da Rússia e da República Checa em dois documentários sem medo nem pruridos de agarrar o touro pelos cornos.

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Intensive Life Unit: a vida numa unidade de cuidados intensivos da República Checa filmada com inteligência e sensibilidade DR

Num festival onde o pré- e o pós-Cortina de Ferro estiveram em foco através dos filmes dos húngaros Márta Mészáros e Miklós Jancsó, também se falou, e se mostrou, o que se passa hoje no Leste da Europa. Sobretudo em dois dos melhores filmes seleccionados para esta edição do Porto/Post/Doc. Da República Checa chegou-nos um documentário imersivo que mereceria ter feito parte das selecções competitivas, Intensive Life Unit, primeira longa-metragem de Adéla Komrzy (secção Europa 61), isto enquanto na Competição Internacional estava Jours de Fête, do suíço Antoine Cattin, retrato da Rússia contemporânea ancorado nos seus sete feriados nacionais oficiais. Dois filmes que se atiram a temas difíceis sem medo das armadilhas que lhes saltam à frente, e com assinaláveis sentido de humor e de humanidade.

Vamos ser sinceros: em teoria, acompanhar o dia-a-dia de uma unidade pioneira de cuidados paliativos no Hospital Universitário de Praga não é coisa que entusiasme qualquer espectador. É isso que faz de Intensive Life Unit, ainda por cima uma primeira obra que agarra o touro pelos cornos, uma proeza tão extraordinária. Adéla Komrzy desmistifica os cuidados paliativos, acompanhando os directores clínicos da unidade, Katerina Rusinova e Ondrej Kopecky, em conversas com pacientes, reuniões com estagiários ou acções de formação. O seu objectivo não é preparar a morte, como muitos erradamente pensam, mas sim garantir que os pacientes com diagnósticos terminais possam ter uma vida digna – daí o título do filme, “Unidade de Vida Intensiva”, em português.

São apenas 75 minutos de filme, inteligentíssimos no modo como Komrzy discretamente nos aproxima destas personagens e como elide com elegância e discrição os seus desaparecimentos. Sempre sem escamotear o fardo emocional de tal trabalho, colocando a questão a um nível de simples direito humano básico, filmado com serenidade e sensibilidade.

O cuidado colocado pela unidade de Praga no conforto dos seus pacientes individualizando o tratamento às exigências específicas de cada um está nos antípodas da uniformização documentada num dos episódios que compõem Jours de Fête. Dzhis, imigrante cazaque em São Petersburgo e uma das quatro personagens que o filme segue ao longo de vários meses, é internado com uma doença contagiosa mas sem grande gravidade, e o ambiente do hospital pouco ou nada difere da camarata onde vive com outros imigrantes, ou da prisão que se entreverá já perto do final.

A imagem que Antoine Cattin nos apresenta é a de uma sociedade em desagregação que não está assim tão longe do “mundo ocidental”; uma Rússia a dois tempos, dividida entre ricos e pobres, perseguida pelas mesmas questões existenciais da imigração, da xenofobia, da precariedade, da solidão. E o cineasta não tem medo de pôr os opostos a tocarem-se. Filma Dzhis, o imigrante cazaque que sobrevive de biscates porque o sistema não lhe permite garantir mais do que um emprego precário. Mas também filma Dina, condutora de autocarro com um discurso xenófobo extremista que, no seu caso, coexiste com um feminismo assumido e com um desprezo total por Vladimir Putin; ou Maria Fiodorovna, uma apparatchik responsável por alojamentos sociais prisioneira de um sistema patriarcal que só a valoriza uma vez por ano; ou Nikita, o “nómada digital” cuja start-up faliu e que usa o seu drone para filmar de cima a monumentalidade turística de São Petersburgo.

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Jours de Fête parte das vidas de quatro habitantes de São Petersburgo para compor um retrato da Rússia actual Kirill Kazachkov

Por cima de tudo paira a sombra da guerra a sombra que nós, espectadores, vemos num filme de 2021, anterior por isso às hostilidades de Fevereiro, mas também que Dina sente a todo o momento como inevitável (mas que guerra, e contra quem?). No entanto, a vida continua, e disso são prova a quantidade de risos, gargalhadas, aventuras mais ou menos delirantes e festividades mais ou menos espectaculares que ajudam a compor um olhar externo mas profundo sobre um país profundamente disfuncional.

Esta Rússia de 2018-2021 (o período que Antoine Cattin filmou) estava, toda, nos filmes de Miklós Jancsó que o Porto/Post/Doc mostrou esta semana – e que foram por sua vez rodados entre 1967 e 1974. A História, por vezes, repete-se.

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